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Artigos Publicados no JC


CAMARADAGEM


Publicado no JC em 27/06/12
Houve tempo em que eu frequentava assiduamente o restaurante do Hotel São Domingos. No jantar, para comer uma divina lagosta grelhada na manteiga, servida pelos maitres Antônio Coelho e Aquino, e o barman Henrique, e esticar na noite com Tomaz Seixas, Renato Carneiro Campos, Geraldo Mendonça e Luiz Heráclito, na sua boate Negresco, animada pelo teclado do maestro Caruaru, voz e violão de Expedito Baracho, o crooner Raimundo Santos, Martins da Sanfona e Jacaré no cavaquinho. Pelos aviões e aeromoças que aterrissavam na boate, benza Deus!

O São Domingos era o hotel da moda, na década de 60, e nele se hospedavam delegações de grandes times de futebol, artistas de rádio, teatro e cinema, cantores famosos, prósperos executivos e tripulações de companhias aéreas. Quando fecharam a boate, passou a funcionar no local um restaurante improvisado, de Mirian, filha de Luiz Dias, dono do hotel, com pratos comerciais.

Ali, fui apresentado a Luiz Gonzaga, que me tinha consideração porque, na época, eu trabalhava na Fábrica da Torre e ele recebia o patrocínio de empresas do grupo, empresa do grupo, para promover seus shows. Aprendi muito com o Rei do Baião, homem de vida agitada, conhecendo o Brasil, principalmente o sertão nordestino, onde era idolatrado, menos em Carnaíba.

Sempre comprei seus discos e ainda os ouço quase todos os dias, de preferência no banho matinal e no café da manhã, quando peço a minha filha Joana Elisa: ”Bote um negocinho aí pra alegrar”. E como curto sua obra, tomo a liberdade de dizer que ele foi, antes de mais nada, excelente intérprete e exímio arranjador.

Sei que não estou dizendo novidade, porque outro dia, almoçando com Lívia Valença, o ensaísta Nivaldo Mulatinho, seu irmãozinho e o romancista Gilvan Lemos, eles externaram a mesma opinião. Acho também que seus melhores letristas foram Humberto Teixeira e Zé Dantas. Ainda me emociono quando escuto Sabiá. Pena que Dantas tenha partido tão cedo, porque tinha muito para nos dar com seu extraordinário talento e letras autenticamente nordestinas.

Certa vez, no São Domingos, onde ele passava semanas inteiras, quis lhe agradar: “Mestre Gonzaga, você está moço, em plena forma física - qual é o seu segredo?”. E Gonzagão: “Obrigado, doutor. Eu estou bem, por fora. Na hora das ‘camaradages’ é que a gente sabe se está bem mesmo...”  

Penso que não haveria Gilberto Gil, Dominguinhos, Marinês, Elba Ramalho, Petrúcio Amorim, Santana e a maioria dos sanfoneiros e forrozeiros sem Luiz Gonzaga, que impressionava pelo poder de liderança.

Uma tarde o vi dobrando a esquina da lendária Sloper, na Rua Nova com a Palma. Elegante, trajava calça e jaqueta jeans, azuis, caminhava em passos firmes, cadenciados, cabeça erguida, peito estufado, óculos esportivos escuros, consciente de seu valor, o que lhe realçava a dignidade. Nenhum músico pernambucano foi mais carismático do que Luiz Lua Gonzaga.

*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Associação Brasileira de Imprensa – ABI.



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CIRCUNSTÂNCIAS

Publicado no JC em 20/06/12

Não vou citar aqui a máxima batida de Ortega y Gasset. Mas que as circunstâncias da vida têm um peso extraordinário no nosso cotidiano e até no destino, isso tem.

No começo da advocacia, eu ousava garantir aos meus clientes que tal ou qual ação estava ganha. A experiência me ensinou que nenhuma ação está ganha, por melhor que pareça ser o seu direito, antes de a sentença transitar em julgado. Mais ou menos como dizia o folclórico Vicente Mateus, presidente do Corinthians: “O jogo só acaba quando termina”.

Outro dia, esqueci, na mesa do restaurante onde costumo almoçar, minha carteira de jornalista e um cartão de crédito. Duas horas depois, telefonam do restaurante me avisando que tinham encontrado os dois documentos. No dia seguinte, voltei ao restaurante, a garçonete me contou o fato. Notando que duas moças que almoçavam manuseavam meu cartão e identidade, pediu que elas lhe entregassem os objetos porque eram meus. As moças se recusaram, alegando que eles lhes pertenciam. Não se diga que a casa é frequentada por “gentinha”. Ao contrário: a clientela é de profissionais liberais, bancários, comerciantes, etc. Incrível é a reação das moças: a petulância e a frieza ao afirmarem que os cartões eram delas. A garçonete não viu outra saída senão tomar tudo na marra e me devolver. Contando o caso a um policial, ele lamentou: “Isso é o comum no Brasil”.

Fui almoçar numa pizzaria do Paço Alfândega. Fiz meu prato e entreguei meu cartão à caixa, ela me pediu para digitar a senha, digitei, ela disse que não conferia. Mandou que eu digitasse novamente, digitei, e ela repetiu a mesma coisa. Dei-lhe um outro cartão e a operação vingou. Ao meu lado, enquanto a caixa manobrava meu cartão, uma senhora distinta conversava comigo. Almocei, fui à Livraria Cultura onde fiquei duas horas. Minha filha Mamá escolheu umas revistas, e, quando fui pagar, procurei o tal cartão, cuja senha não conferia - não o encontrei. Voltei à pizzaria, comuniquei à caixa o ocorrido e ela me disse que o cartão não estava lá.

No outro dia, a caixa me telefonou informando que meu cartão havia sido trocado pelo da senhora que estivera ao meu lado e me deu seu nome e telefone. Telefonei e ela confirmou estar com meu cartão, perguntando se eu estava com o dela. Respondi que não, mas, por desencargo de consciência, procurei na minha carteira de dinheiro e lá estava ele. Ela riu muito:“Desconfiei que alguma coisa estava errada, porque tentei passar seu cartão, pensando que era o meu, duas vezes, ele foi recusado. Depois de muitas gargalhadas, marquei para devolver seu cartão e “resgatar” o meu. Quando me forneceu seu endereço residencial, uma surpresa: ela mora no mesmo prédio e é vizinha de nosso amigo comum Roberto Motta.

A troca foi feita amistosamente - e no espaço de duas semanas, fiquei conhecendo, mais uma vez, as forças do bem e do mal. Assim é a vida.

*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Federação Internacional dos Jornalistas.

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DÚVIDA ATROZ



Publicado no JC em 13/06/12




   Em recente artigo na Folha de São Paulo, Heloísa Maria Starling conta que durante um evento ocorrido na FLIP de Parati, em 2009, Chico Buarque causou espanto e surpresa na plateia com uma declaração inesperada: “Não sei se Guimarães Rosa é melhor que João Gilberto. Eu não sei.”

   Temos que respeitar qualquer dúvida metafísica de Chico Buarque. Quando nada e se outra utilidade não houver, tal opinião serve, no mínimo, para analisarmos com profundidade o assunto. Abstraindo os nomes poderosos de Guimarães Rosa e João Gilberto em seus respectivos campos de romance literário e música popular, fico com a maior relevância estética do romance.

   Enquanto Guimarães Rosa ergue uma catedral exaustivamente construída de sua raiz, por ele mesmo, pela força de seu extraordinário talento de escritor, baseada em experiências pessoais e andanças pelo grande sertão e veredas de Minas Gerais, convivendo com sertanejos e a terra propriamente dita, tornando alguns desses sertanejos personagens imortais de nossas letras, nos revelando um rincão mágico, recôndito e até então desconhecido, penetrando na psicologia do rústico, adquirindo dimensões universais dignas de Homero, pelo vigor e consistência do texto, João Gilberto, mais intérprete do que compositor, valeu-se (com méritos) do acervo da época de ouro do rádio, para renová-lo com sofisticada riqueza rítmica, harmônica e contida beleza plástica. Resumindo: Guimarães Rosa “criou”; João Gilberto “recriou”.

   A matéria de Heloísa Starling derrapa no terreno escorregadio da superficialidade fática (gostou, Hugo Vaz?). E dá a entender que João Gilberto foi o pai “do investimento rítmico a partir do qual se organizam todos os outros elementos de sua obra.” E cita João: “As palavras devem ser pronunciadas de forma mais natural possível, como se estivesse conversando”.

   Sem jamais desmerecer o baiano, seria justo reconhecer, para restabelecimento da verdade histórica, que João Gilberto aprendeu a dividir o ritmo, o “seu ritmo”, a futura e definitiva “batida” da Bossa Nova (aperfeiçoando-a e apurando-a, através dos tempos, conferindo-lhe personalíssima e inconfundível marca registrada), quando jovem, em priscas eras, ouvindo os retumbantes sucessos de Orlando Silva em 78 rotações, nos alto-falantes das festinhas da mocidade, de Juazeiro da Bahia, obcecado pela genialidade do Cantor das Multidões. Contam que Lyrio Pane Calle queixou-se a Radamés Gnattali de que Orlando atravessava a cadência do samba, ora adiantando ora atrasando o andamento, “atrapalhando” sua orquestra, tendo Gnattali o aconselhado a obedecer a partitura, “esquecendo” Orlando...

   Na fecunda fase dos ídolos de vozeirão, tipo Silvio Salema, Vicente Celestino e Chico Alves, surgiu o iluminado Orlando Silva (“que a partir de 1935 acendeu a mais forte luz que a MPB já terá conhecido até hoje” – segundo Ricardo Cravo Albin) para transmitir “da forma mais natural possível” a mensagem do autor, imprimindo à música popular brasileira o sopro renovador do modernismo. Tanto que Joubert de Carvalho considerava Orlando “avançado demais”.

  Nonada: o barquinho vai, a banda passa, Carinhoso (1916) e Riobaldo ficam. Para sempre. Amém!

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é do Sindicato dos Escritores do Estado do Rio de Janeiro.



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NO RANCHO FUNDO




Publicado no JC em 06/06/12



   O que mais intrigava naquele sítio singelo era que, embora localizado no agreste, seu terreiro era de areia branca, bem batido. De onde teria vindo aquela areia, ninguém sabe explicar até hoje. E o dono que ali morava sozinho, com dois vira-latas, um sabiá laranjeira e um concriz, estava muito satisfeito, pois quando a lua cheia banhava o terreiro, com sua luz prateada, era como o clarão do dia, os pássaros da redondeza despertavam e vinham cantar nas árvores ao redor da choupana. De tão forte, a claridade agitava o pequeno rebanho de guzerá do sítio, que não parava de mugir, os burros relinchavam e os cachorros uivavam nervosos.

   Certa manhã, quando o dono do sítio selava seu cavalo de estimação, para ir à cidade, tomar café na feira livre ou no mercado público, ouviu berros de índios que se aproximavam, em velocidade, montados em potros ligeiros. Antes, já notara rolos de fumaça preta que saíam, intermitentes, entre montanhas longínquas e a linha do horizonte azul, sabendo, portanto, que seus vizinhos peles-vermelha estavam em pé de guerra.

   O chefe do grupo apeou, entrou na choupana e queixou-se de que os caras-pálidas haviam rompido o tratado de paz celebrado com sua tribo. O cacique veio pedir ajuda, querendo que o dono do sítio fosse lutar a favor de sua gente, contra o exército dos brancos. O dono do sítio era valente e corajoso, mas tentou convencer o cacique de que pouco adiantaria combater os soldados daquele batalhão, porque outros viriam reforçar as fileiras dos que ali já estavam e que melhor seria dialogar com o general Custer, comandante dos inimigos, e se dispôs a fazê-lo. O fato é que o dono do sítio atendeu o pedido do cacique, atrelou o cavalo e o acompanhou até seu acampamento, no alto das montanhas rochosas, distante muitas léguas.

   De repente, ele acordou de madrugada e se mexeu na rede de algodão armada no alpendre da choupana. Era noite de lua nova e a força da lua trazia-lhe sonhos mirabolantes e pesadelos. Levantou-se, foi à cozinha, lavou o rosto com água fria da moringa, acendeu um cigarro de palha e tropeçou nuns livros que ganhara de presente na véspera, inclusive um tal de Pradaria, que lera ainda jovem, em 1948. Outro romance que gostava muito era Um vagabundo toca em surdina, do norueguês Knut Hamsun, sem falar em Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, e em O Lobo do mar, de Jack London. Depois, deitou-se novamente na rede e pegou no sono profundo. Desta vez, para sempre.

   P.S.: Magistral o livro de poemas Mattinata, de Fernando Monteiro, lançado recentemente em Natal, pela Edições Sol Negro (RN) e Nephelibata Edições (SC), capa de Francisco Brennand. Com este título, Fernando Monteiro pode ser considerado um dos maiores poetas da língua portuguesa.

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista é da Academia de Artes, Letras e Ciências de Olinda.




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NELSON CALDAS



Publicado no JC em 30/05/12  



   Em Foi ela, samba de Ary Barroso, o maior compositor brasileiro diz que quem quebrou seu violão de estimação foi ela. E lamenta que, depois disso, “minha casa se despovoou”, num dos mais lindos versos da nossa música popular.

   Pois bem: o bairro das Graças vem se despovoando, nostálgica e tristemente, através dos anos. Na década de 50, quando nele fui morar, já encontrei, entre outros: o poeta Tomás Seixas, os advogados Jordão Emerenciano, Demócrito de Souza, Jorge Tasso, José Piauylino, Rilton Rodrigues da Silva, Rinaldo Mota, José Maria Lubambo, Eloy e Galba D’almeida Lins. O sociólogo Vamireth Chacon, os médicos Jayme da Fonte, Romualdo Veras, Jamesson, Jansen e Toinho Ferreira Lima, os engenheiros Jorge Martins e Gabriel Neves, o cirurgião Romero Marques, o historiador Antônio Gonsalves de Mello, o contista Jefferson Ferreira Lima, os empresários Jorge Romanguera e Manoel Amorim, o comerciante Waldemar Machado, os bancários Manta, Gilberto Galvão e Adelmo Supra, o major PM Deolindo Moura, os arquitetos Zildo, Zenildo e Zamir Sena Caldas, os irmãos Nando e Lula Dubeux, Luiz Seixas (do Bacalhau) e suas irmãs Fany e Poly. Pouco depois chegaram o cronista Renato Carneiro Campos, o bardo Eduardo Wanderley, o filósofo Jommard Muniz de Britto e o escritor Garibaldi Otávio. Os tipos populares: Deba, Nego Tito, Renato Boca da Noite, Marocão, Costeleta e João Pitada. O marchante Djane, João de Melo, dono da Palhoça do Melo, Cirilo, da galeteria Alvorada e os irmãos cearenses, do “Bar dos Cearenses”. Aos moradores ilustres, somava-se o estudante de medicina Nelson Caldas. Com seu recente falecimento, restaram da velha Capunga um quadro na parede e um ex-bairro residencial tipicamente recifense, de casas bonitas e espaçosas, de jardins floridos e amplos quintais arborizados, e badaladas da Ave Maria, hoje selva de pedras.

   O curriculum vitae de Nelson Caldas não caberia neste espaço. A lembrança que guardaremos dele é a de um profissional ético e competente. De um cidadão digno, tendo jogado futebol no juvenil do Sport, clube de sua paixão e um dos maiores pescadores submarinos do Brasil. Nas Graças ele curtiu os melhores momentos da mocidade, batendo pelada no nosso campinho da esquina das Pernambucanas com a Jacobina e participando de serestas em madrugadas de lua cheia. Sentimental e nostálgico, faz uns cinco anos, sugeriu um uísque em nossa casa de Olinda, com Jonas Ferreira Lima, meus filhos e Vera, sua bela e única mulher, para recordarmos os bons tempos da Capunga. Foi um encontro típico de despedida, de noite da saudade. Talvez já desconfiasse de que a saúde lhe fugia aos poucos e a vida é um segundo que passou depressa. Socialista convicto, foi sepultado envolto no glorioso pavilhão rubro-negro, com amigos e companheiros entoando cazá, cazá, cazá! Tenho certeza de que não desejaria homenagem melhor.

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Associação Brasileira de Imprensa-ABI.



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A LUZ DO SOL



Publicado no JC em 23/05/12  

   Encontro o advogado e professor da UFPE, ex-presidente do Conselho Deliberativo, ex-Vice-Presidente Jurídico e Conselheiro do Sport, há 40 anos, Sylvio Neves Baptista, no Fórum Rodolfo Aureliano, cansado de insistir com a diretoria do Sport, que lhe negou cópia do protocolo de intenções da Arena, firmado com a Engevix. Sylvio tenta saber, em vão e preocupadíssimo, o que aguarda o Sport nessa negociação.

   Leitores perguntam o que está havendo e não sei responder. Meu tio-avô, José de Barros Cavalcanti, foi um dos maiores remadores do Sport, inúmeras vezes campeão estadual. Minha mãe, Amália Maria, torcedora fanática do Leão. Meu pai, Carlos Koch, dirigente do Sport, de 52, quando veio morar no Recife, até falecer. Teve como companheiros legendárias figuras do clube: Adelmar da Costa Carvalho, Antônio Baltar, José Marcelino, José Rosemblit, Leopoldo Casado, Arnaldo Maciel, Haroldo Praça e Sílvio Pessoa, entre outros.

   Meu irmão, Carlos Aloysio, fez o gol da vitória do amador do Sport (1 x 0), que deu o título ao time, na decisiva contra o Náutico, na Ilha do Retiro, em 55. Foi conselheiro do clube a vida inteira, responsável pela conservação do campo e participou da equipe de engenheiros que colaborou na ampliação do estádio. Quando assistia Sport x Vila Nova, pela 19ª Rodada do Brasileiro da Série B, em 15 de outubro de 2002, viu, aos oito minutos do primeiro tempo, Gaúcho perder um pênalti defendido por Paulo César, do Vila, e a partida terminou 0 x 0. Logo depois do pênalti, sentiu-se mal e a decepção e o stress agravaram sua já debilitada saúde, baixando à emergência do Albert Sabin, onde morreu no dia seguinte. Foi sepultado envolto no glorioso pavilhão rubro-negro, por Lilica. O Presidente Gustavo Dubeux conhece Lilica? Conheceu Murilo Teixeira, Capuano, Mathias e o roupeiro Chico, bicampeões invictos pelo juvenil de 54 e 55? Meus seis filhos, sete netos e nove sobrinhos são rubro-negros desde criancinhas.

   A espinha dorsal e básica de um clube são seu corpo de sócios e torcedores aos quais os cartolas devem satisfação e prestar conta de seus atos, em especial,de vultosas operações financeiras.Dinheiro não é tudo. Se fosse, o Sport levantaria a taça este ano. Mas contratou, a peso de ouro, técnico incompetente, retranqueiro, arrogante e coerente com sua granítica burrice (“Eu repetiria tudo que fiz” – jactou-se na melancólica despedida). Ou seja, perpetuaria o ultrapassado e pobre futebol de várzea e usina, à exaustão, com balões e ligação direta que “exibira” no campeonato. Transação imobiliária milionária envolvendo patrimônio da magnitude, grandeza e tradição do Sport Clube do Recife exige publicidade, clareza e transparência em respeito e consideração aos seus aficionados. Exige o brilho irradiante e esterilizante da luz do sol. Conselho Deliberativo (o nome está dizendo) existe para aconselhar e deliberar sobre o que é bom para o clube e não para emprestar legitimidade a qualquer proposta do Executivo, abonando-a e agasalhando-a com o manto escorregadio e nebuloso da suspeição. Salvo melhor juízo e prova em contrário, nenhuma agremiação tem dono. Quem não deve não teme.

   Pelo Sport tudo!

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é bicampeão invicto (54/55) de futebol pelo juvenil do Sport Clube do Recife.


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SOBRE FAVELA




Publicado no JC em 16/05/12



   Carta do psicólogo Paulo de Moraes Marques. Curioso como pessoas feito Paulo Marques e o artista plástico José Cláudio não utilizam os meios modernos para se comunicarem. Quando José Cláudio ou Paulo querem falar comigo mandam carta escrita à mão, a velha e decente “de próprio punho”.

   Diz Paulo que em Favela (23/11/2011), faço “sutis sinalizações” sobre porque os morros do Rio de Janeiro são conhecidos como favela. Confessa que já há muito vem tirando conclusões, a partir da leitura detalhada de acontecimentos dramáticos sobre a quarta expedição “para extermínio do arraial de Canudos”. E acrescenta que leu também interessante artigo analisando a questão das favelas, o qual “infelizmente não guardei”. E crê que com isso pode trazer mais luz ao tema.

   Chamando o feito à ordem, como dizem os bacharéis, e para maior compreensão do leitor, esclareço que nessa tal crônica eu dizia que o nome favela, referente aos morros do Rio de Janeiro, deriva da planta nordestina do mesmo nome, comum no Sertão. E que os morros do Rio foram batizados de favela por terem sido o reduto preferido dos refugiados de Canudos que neles foram morar depois da guerra.

  Com classe, como lhe é peculiar, Paulo esclarece que não somente os jagunços e desvalidos formaram a população dos morros do Rio, mas também muitos dos soldados que escaparam estropiados dos combates. E lembra, para reforçar sua tese, que leu na revista Fatos e Fotos ou Realidade que foram construídos barracões no alto dos morros no Rio de Janeiro para abrigar praças que regressaram de Canudos e ali passaram a sobreviver “em petição de miséria”.

  Paulo termina dizendo em sua correspondência, muito bem escrita e com relevantes dados históricos e sociológicos, que, ao emigrarem para o Rio de Janeiro, os adeptos de Antônio Conselheiro deixaram inconscientemente marcados “o pulsar vivo de um povo massacrado e sua condição eterna de lutar pelo direito ao seu espaço, autonomia e ideais”.

  Acho importante transcrever trechos de cartas que esclarecem episódios narrados pelo cronista que necessitam de complementação, como nesse caso. O ilustre psicoterapeuta holístico lembra ainda que muitos desses militares de patente rasa chegaram ao Rio feridos e mutilados, sem moradia. No meu tempo dizia-se: “sem ter onde cair morto”.

  Traduzindo: não só “pobres retirantes nordestinos” transformaram em favelas os morros do Rio, mas também os ex-combatentes fardados, sobreviventes da maior chacina da História do Brasil.

   P.S.: Telefonema de Roberto Cunha me corrigindo: “O primeiro gol de Josimar na Copa de 86, no México, foi contra a Irlanda e não Espanha”, conforme informei aqui. Obrigado, Bel.



   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.



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CHOCOLATE?



Publicado no JC em 09/05/12



   Quando o Barcelona aplicou 4x0 no Santos, a imprensa considerou o Barcelona o maior time do mundo, um time invencível. Daqui desta página, discordei. Disse que o placar só foi elevado porque o Santos amarelou - e que não existe time invencível. Não me deslumbrei com o futebol do Barcelona, porque vi melhores. Quando o Brasil ia mal na Copa de 86, no México, perguntaram a Nilton Santos o que estava faltando naquele selecionado, e a “Enciclopédia” respondeu, com a sabedoria e a simplicidade de sempre: “Crioulo”. Telê escalou o lateral-direito Josimar, do Botafogo, que logo fez um gol espetacular na Espanha.

   Pois bem: no Barcelona falta crioulo. E tanto falta que ele foi derrotado na Liga dos Campeões da Europa justamente por dois negros – Ramires e Drogba. No primeiro jogo contra o Chelsea, em Londres, Ramires partiu em alta velocidade, pela esquerda, e cruzou, milimetricamente, para Drogba fazer 1x0, decidindo a partida. No segundo, o que decidiu, foi o gol de Ramires com uma sutil cavadinha, cobrindo o goleiro. Quem acha que foi o pênalti perdido por Messi se engana.

   O Barcelona mandava em campo, do alto de seus 2x0, quando Ramires diminuiu para 2x1. Aí o Barcelona desabou. Quando foi cobrar o pênalti, Messi estava arrasado psicologicamente porque tinha plena consciência de sua responsabilidade. Sabia que o destino do clube estava em seus pés. E nesses momentos cruciais e terríveis, para o batedor, cada perna passa a pesar 80 quilos e não obedece ao comando do cérebro. Acostumado a chutar rasteiro e no canto, deslocando o quíper, Messi isolou a bola no travessão, traindo o descontrole emocional. Daí em diante, o Barcelona desesperou-se.

   Não interessa se o Barcelona teve mais posse de bola. A posse da bola sem penetração na defesa adversária (como fazia o Santos de Pelé e Coutinho) torna-se improdutiva, com o inimigo retrancado. Na década de 50, o América do Rio teve uma linha de frente fantástica: Natalino, Maneco, Dimas, Ranulfo e Jorginho. Esse quinteto bailava no gramado, mas era dança sem futuro, o que lhe valeu o apelido de Tico-tico no fubá, em alusão ao chorinho de Zequinha de Abreu, gravado por Carmen Miranda e Ademilde Fonseca.

   Quando o Barcelona fez 2x0, Galvão Bueno (sempre ele) surtou: “Chocolate! Preparem-se pro chocolate!” Pudera: além do Chelsea, com um homem a menos (seu zagueiro e capitão fora expulso aos 17 minutos), a audiência televisiva do Chelsea na Globo é titica comparada com a do Barcelona. E Galvão costuma torcer abertamente pra quem lhe interessa, desrespeitando o telespectador. E ainda teve o desplante de “prever” que Messi faria o gol da vitória “nos 45 minutos finais”. Mas menino!

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Associação Brasileira de Imprensa-ABI.




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FIGURAS DEMONÍACAS


Publicado no JC em 02/05/12




   No prefácio de Ian Kershaw, autor do livro Hitler, considerado um dos melhores escritos sobre o líder nazista, ele diz que a primeira pergunta a se fazer é como Hitler foi possível. Como pôde um "desajustado tão bizarro" chegar a tomar o poder na Alemanha, "um país moderno, complexo, economicamente desenvolvido e culturalmente avançado".

   Entre outros adjetivos, Kershaw chama o Füher de figura demoníaca, cruel (menos cruel do que Stalin), equivalente a uma "não pessoa", arrivista vulgar, inculto, reservado, carismático, inflexível, impiedoso, astuto, cínico, egomaníaco, narcisista, suicida em potencial, ideólogo de convicções inabaláveis, o mais radical dos radicais – como pôde, repita-se, a sociedade alemã ser galvanizada por Hitler? E completa: "É algo que requer exame detalhado."

   Me lembrei da figura tremebunda de Hitler ao ler matéria sobre Anders Behring Breivik em revista semanal, recentemente. Assim como a humanidade perguntava, perplexa, na Segunda Guerra, como era possível existir o monstro Hitler, e como o deixaram liderar uma nação como a Alemanha, indaga-se, hoje, como pode surgir um indivíduo tão escroto quanto Behring, em país tão civilizado quanto a bela e civilizada Noruega. E o que mais impressiona são as identidades e coincidências entre esses dois tétricos personagens no plano pessoal e no ideológico.

   Não me consta que tenham feito exame psiquiátrico em Hitler, quando vivo. Quanto a Behring, seus diagnósticos são conflitantes. O primeiro concluiu que ele é esquizofrênico, o que o torna inapto a ter noções dos seus atos. O segundo diz o oposto.

   Não sei como um indivíduo que metralhou 77 pessoas que nunca viu nem lhe fizeram mal, e confessou ser seu objetivo matar "uns 500", possa ser "normal". Assim como Hitler, que provocou e realizou o maior massacre humano de que se tem notícia, não há como escapar de considerá-los "figuras demoníacas". Antigamente, não, mas hoje estou convicto de que existem poderosas forças do bem e do mal, atuando sobre o planeta. Só um ser vivo emocionava Hitler: seu cachorro policial, por quem chegou a derramar lágrimas. E, às vezes, sua mãe, já que detestava o pai. Só uma coisa fez Behring verter o pranto no seu julgamento: o vídeo de sua autoria com imagens odiosas de muçulmanos. "Por ver meu país sendo desconstituído. E foi meu primeiro no YouTube." Tadinho!

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Federação Internacional dos Jornalistas.




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MERCADO EDITORIAL DIGITAL



Publicado no JC em 25/04/12 




   Fui convidado por Geraldo Freire para participar de seu programa das 11h, na Rádio Jornal do Commercio. Tema: A Encyclopaedia Britannica acaba com a edição impressa e se torna 100% digital. A Encyclopaedia Britannica, publicada pela primeira vez em Edimburgo (Escócia), em 1768, noticiou no dia 13 de março que vai acabar com suas edições impressas e continuar com versões digitais online. O carro-chefe, com 32 volumes, disponível a cada dois anos, era vendida por US$1.400. Uma assinatura online custa US$70 por ano, e a empresa lançou recentemente aplicativos que variam de US$1,99 a US$4,99 por mês. Vai continuar com a venda de edições impressas até que o estoque atual de cerca de 4 mil conjuntos se esgote. “A edição impressa tornou-se mais difícil de manter e não era o melhor elemento físico para oferecer a qualidade do nosso banco de dados e a qualidade do nosso editorial”, justifica Jorge Cauz, presidente da Britannica, a Reuters.

   Geraldo Freire pergunta o que acho da novidade. Digo que isso me preocupa. Primeiro, porque daqui para frente, nossas consultas grátis serão respondidas pela Wikipédia, que, segundo informações, é falha nas respostas, não merecendo a confiança que merecia a velha enciclopédia. Mas temos que encarar a realidade. O recorde da enciclopédia foi em 1990, com 120 mil exemplares de 32 volumes vendidos. Em 1996, esse número caiu para 40 mil. “As vendas de enciclopédias impressas foram insignificantes durante vários anos”, disse Cauz. “Nós sabíamos que isso ia acontecer. Isso tem a ver com o fato de que agora a Britannica vende seus produtos digitais para um grande número de pessoas” – acrescenta. É importante frisar que a Britannica representa apenas 1% do lucro da empresa que a edita, que explora o ramo de livros escolares e outros tipos de edições.

   Lamento termos prejuízos olfativos e estéticos com a queda dessa enciclopédia. Porque ao entrarmos numa biblioteca bem conservada, a sensação que sentimos é aquele cheirinho gostoso de papel. Quanto à estética, livro é um dos adornos que melhor decoram um ambiente, um escritório. Conheci duas casas com biblioteca de cerca de 40 mil volumes: a do meu avô, jornalista Aloysio de Carvalho, em Salvador, e a de Giuseppe Baccaro, artista plástico, na Rua de São Bento em Olinda. Como eu me sentia bem ao frequentá-las! Não me conformo com o desaparecimento gradual das coleções e manuscritos de autores famosos dessas estantes.

   Pior: com a online a mocidade não lê mais os melhores escritores, viciada em não ter trabalho de raciocinar e de exercitar sua redação. E fora dos clássicos não há salvação.

   P.S.: Humberto Alves Pequeno, conhecido como Neném, jogou no Sport na década de 50 e faleceu recentemente deixando saudade.

   * Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Federação Internacional dos Jornalistas.




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VULNERABILIDADE



Publicado no JC em 18/04/12





   Considero o estupro crime grave e covarde. No meu tempo, estupro era constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça. Hoje, com a Lei nº12.015, de 07/08/2009, que criou a figura jurídica dos crimes sexuais “contra vulnerável”, qualquer chumbregaçãozinha é estupro. Cuidado, portanto, os namorados com os selinhos, quando forem ao cinema, e os amassos nas baladas. Pode dançar de rosto coladinho? E se o cara se entusiasmar? É proibido ser feliz?

   Sobre estupro, reza o artigo 213 do Código Penal: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que a ele se pratique outro ato libidinoso”. Bote o leitor a imaginação pra funcionar e faça sua lista do que seria “ato libidinoso”. Inclua no rol o que a doutrina considera beijo lascivo, e não me pergunte o que é beijo lascivo. E ainda o artigo 217-A: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”.

   Até aí, tudo bem - o que atrapalha é a palavrazinha vulnerável, pois a lei considera que todo menor de 14 anos é anjinho ingênuo e inocente, que não sabe o que está fazendo, o que é certo ou errado, tadinho. Na época da internet, das drogas, da bebida, do fio-dental, novelas e Big Brother, é falsa premissa.

   Vamos a um caso verídico que está sub judice, para análise e opinião do leitor. Um jovem professor estava sozinho e posto em sossego em sua casa, quando uma menina de treze anos bateu à sua porta. Reconhecendo sua aluna, ele mandou-a entrar. Sedenta de amor (gostou, Aldo Paes Barreto?), ela tomou a iniciativa de beijá-lo, digamos, com sofreguidão. Depois, vieram carícias mais ousadas, que ninguém é de ferro, conforme a química hormonal, mas não chegaram ao finalmente. Ficaram nas camaradagens, como diria Luiz Gonzaga.

   A menina saiu do encontro eufórica porque o rapaz é cobiçado pelas alunas que o consideram bonito, charmoso e sarado. Um gato. E logo tratou de espalhar a proeza para se vangloriar e causar inveja, ciúme e despeito às colegas de colégio.

   Uma de suas amigas, sentindo-se frustrada (ou traída?) vingou-se, contando a história à mãe, que logo a repassou à mãe da garota, que representou criminalmente contra o moço a quem o Código Penal classifica de “agente”, a Polícia, de “acusado”, “indiciado” e “indivíduo”, e a Justiça, de “réu”. De repente, um educador, sem mácula, transforma-se, sem justa causa, em monstro, promíscuo e devasso, por força de uma legislação que nasceu arcaica e cretina. Sobretudo cretina.

   É certo que esse rapaz, sem antecedentes criminais e na flor da idade, assediado em sua própria casa por uma adolescente, seja condenado à reclusão, que varia entre oito e quinze anos? Onde estão a vulnerabilidade e a inocência da “vítima”, e a maldade e o dolo do “tarado”? A lei nem sempre é legítima. A legislação positiva tem que acompanhar a dinâmica social, sob pena de se tornar obsoleta, injusta e letra morta, sem aplicação efetiva. Feito a Lei Seca, de triste memória, conforme previ aqui (sem bola de cristal) logo que foi promulgada.

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Pernambucana de Letras Jurídicas.








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SAUDOSISMO?


Publicado no JC em 11/04/12




   Saudosismo é palavra pronunciada no sentido pejorativo. Não devia ser assim. Devemos sentir saudade das coisas boas que passaram e que, temos certeza, não voltam mais (Garcia Lorca: “Las cosas que se van no vuelven nunca”). Saudade de Ademir, Heleno de Freitas e Manga. De Heddy Lamar, Silvana Mangano e Ivone de Carlo. De Zé Dantas, Gordurinha e Nelson Ferreira. De Sylvio Caldas, Paulo Molin e Augusto Calheiros, que jamais cometeria o sacrilégio de gravar o barquinho vai, a tardinha cai. De Yma Sumac, Caterine Valente e Dalva de Oliveira, cantando Cisne Branco. Das noites estreladas do céu azul da Ilha de Itaparica e dos cajus amarelos e perfumados da praia de Pirangi. Saudade dos grandes amores que machucaram e alegraram nossos pobres corações. De tudo aquilo que poderia ter sido e que não foi.

   Já contei que aos sábados me encontro com Orlando Correia, na Pracinha Luiz Bandeira, da Madalena, para conversarmos. Outro dia ele dizia que não se fazem mais congressistas como antigamente, citando, como exemplo, Nestor Duarte, Vieira de Melo, Joaquim Nabuco e Raymundo Faoro, notáveis tribunos, cidadãos honrados e de vasta cultura humanística.

   Abro as páginas amarelas de Veja e leio entrevista de Pedro Simon: “Os bons homens já morreram”. Segundo o senador, a qualidade do Parlamento na média é muito ruim: “Os líderes políticos só pensam em cargo” e “a presidente Dilma não vai conseguir acabar com o fisiologismo”. Lamenta Simon que os bons homens se foram: Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Teotônio Vilela, Miguel Arraes e Mário Covas. Será Simon moralista? Não. Ele está desabafando e sendo sincero - afinal, não há comparação entre esse pessoal e Collor, Renan e Sarney, atuais donos do Congresso. A verdade dói. Como diria Nelson Rodrigues (esse, sim, gênio - e não Millôr Fernandes), a vida como ela é.

   Garante Simon que aqueles que fundaram o PT estão todos fora. E acrescenta que “o partido hoje é de uma gente que não sei de onde veio”. E que botava as duas mãos no fogo por Demóstenes (pra virar churrasco?). Que a imprensa faz reportagens demonstrando casos de corrupção e não acontece nada: “O cara não é condenado e também não é absolvido”. Que se Lula tivesse posto Waldomiro Diniz na rua quando ele apareceu na televisão recebendo dinheiro de Carlinhos Cachoeira e tratando os percentuais, não teria havido o mensalão. “Eu entrei com pedido de CPI, mas o Lula e o Sarney lutaram para não deixar criá-la. Fomos ao Supremo e depois de um ano ganhamos, mas era tarde” – queixa-se o velho gaúcho cansado de guerra.

   Pedro Simon é saudosista por sentir falta dos “homens de bem” ou um brasileiro amargurado pela bandalheira que assola o país?

  *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Federação Internacional dos Jornalistas.



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SE ALGUÉM TELEFONAR


Publicado no JC em 04/04/12



   Corria o ano de 1958 e, no lusco-fusco da barra do dia clareando, na linha do horizonte, entro no Sylver Star, a radiola de ficha toca Se alguém telefonar, de Jair Amorim e Alcyr Pires Vermelho, na voz de Lana Bittencourt.

   Era o que eu precisava ouvir, e a canção dilacerou meu coração. O samba-canção começa pedindo que se alguém, “alguém que eu sei”, pra mim telefonar, não estou. Aquele “alguém que eu sei”, machucava meu peito e o peito dos fracassados do amor que procuravam consolo no Sylver Star.

   Ademilde Fonseca, em temporada relâmpago na Radio Jornal do Commercio, surgiu no balcão com um copo de cuba-libre e sentou na minha mesa. Eu estava calado, ela mexeu a dose com o dedo indicador direito e, os olhos brilhando, me fitou demoradamente. Aí, Lana Bittencourt implorou, num lamento, que se “a voz de alguém por mim mandar chamar, não voltou”. E essa “voz de alguém” doeu na minha alma. Ela maltrata, fere, incomoda. Nada aproxima ou afasta mais uma pessoa de outra do que a voz. Essa história de “(...) se até já esqueci sua voz” é mentira, despeito, balela. Como esquecer a voz de quem, apesar da distância que nos separa, povoa, há anos, nossos sentimentos?

   Ademilde comprou dez fichas de radiola e me preocupei, porque, um mês antes, um torcedor do Santa Cruz foi assassinado num boteco de Jaboatão, por ter repetido dez vezes o rojão de Jackson do Pandeiro: Esse jogo não é um a um, numa radiola de ficha.

   Lana Bittencourt confessa sua decepção amorosa e (talvez) sua “profissão” dizendo que esta noite não quer ninguém, pois a promessa que vão lhe fazer, “a melhor, sei de cor”. O desespero e a dor, a grande dor das coisas que passaram, vêm logo depois, quando manda quem atender o telefone informar, se quiser, a quem perguntar de novo onde ela está, que ela sumiu e “deve andar a vagar por aí”.

   Não há pesadelo maior para uma criatura humana do que “vagar por aí”. Vagar é perambular sem destino, qual zumbi em noite de lua cheia, sem rumo, ou prumo, norte e noção de espaço. É andar atordoado, perdendo tempo. Quem perambula, está à procura de quê? De quem? Do quê? “Por aí” significa ao léu. Quantos quilômetros e em que circunstâncias, avenidas, ruas, becos e ladeiras ela caminhará? Ademilde pediu cerveja e repetiu Se alguém telefonar na radiola. E indagou se eu gostava “daquela gravação”. Sim, eu gostava, e começou a chorar: “Eu também. Todas as mulheres e travestis daqui gostam!”

   De manhã, o bairro do Recife retomou sua rotina. Os ambulantes vendiam suas mercadorias, os mendigos e vagabundos voltavam a mendigar e vagabundear, e logo, as casas comerciais e os bancos reabririam suas portas. Ninguém ficou sabendo que a madrugada foi de êxtase, fantasia, amargura e solidão para os retardatários do Sylver Star, estabelecido no Cais do Porto, defronte do Armazém 11, onde estava atracado o paquete Almirante Jaceguay, do Lloyd Brasileiro. E nada mais foi dito pelos boêmios nem lhes foi perguntado.



   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.



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HERANÇA MALDITA?



Publicado no JC em 28/03/12



   Certa vez, numa pequena turma de amigos, eu disse que era um dos poucos brancos que subiam o Morro do Querosene, sem ser importunado ou agredido. Isso foi no Rio de Janeiro, e eu completara 16 anos. É bom frisar que as favelas do Rio daquela época não tinham tráfico de drogas nem violência nos moldes de hoje. Quando falei isso, um rapaz negro, do grupo, me acusou de racismo. Fiquei perplexo com sua reação porque não tive a menor intenção de ofender alguém.

   Recordei esse episódio agora, ao ler José Castello, no jornal O Globo, de 17 deste mês. Nele, Castello aborda o tema preconceito, partindo da leitura do livro A educação de uma criança sob o Protetorado Britânico, do nigeriano Chinua Achebe. Nesse título Achebe afirma que Coração das trevas, de Conrad, uma das mais importantes narrativas já escritas no Ocidente, é uma obra que propaga o preconceito, que, “há séculos compõe nossa visão distorcida da África”. A África de Conrad é, segundo Achebe, uma África selvagem, primitiva, irracional, insuportável, que “encobre a África real”. E, para justificar sua crítica, relembra as palavras terríveis do romancista polonês, pronunciadas pelo seu protagonista Marlow: “Poderíamos fantasiar que éramos os primeiros homens a tomar posse de uma herança maldita”. E Castello passa a discorrer sobre o significado exato do verbo fantasiar. Diz que a fantasia é a ficção que se infiltra na realidade e lhe dá corpo. E que a ficção, embora devaste e revire o real, expõe sempre suas entranhas.

   Pondera Castello que se Conrad trabalhou com fantasias antigas e mitos tão arraigados em nossas almas, foi (talvez) para transformá-los e não para confirmá-los. E indaga, curioso: “Seria possível pensar em uma ‘África pura’ anterior às fantasias e às ficções? Ou não somos sempre o resultado – os filhos, ainda que ilegítimos – dessas fantasias e ficções?”

   Quando Noel Rosa diz “quem arremata o lote é um judeu”, no lento e arrastado “Quem dá mais?”, por uma mulata “que é diplomada”, estará praticando anti-semitismo, ou registrando “as coisas do real?”

   Com todo respeito, tenho que a “verdadeira África” idealizada por Achebe é a África pré-colonial de Edgar Rice Burroughs e Tarzan, companheiro de aventuras de tantor, o elefante, e de numa, o leão, e a África de Conrad é a que ele conheceu, deformada e prostituída pela colonização europeia, principalmente belga - pela chamada civilização cristã e ocidental.

  Penso que o ficcionista tem a liberdade e o direito, inclusive, de fantasiar a própria ficção, para torná-la mais colorida, palatável, verossímil e consistente, assim como o crepúsculo torna mais colorido, nostálgico e belo o cair da tarde. E o clarão da lua e o brilho cintilante das estrelas iluminam o sorrateiro, misterioso e nem sempre desejado anoitecer.

  *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.



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LUZ TROPICAL







Publicado no JC em 21/03/12
 





   A fotografia está na moda, ocupando o espaço nobre de exposições nas mais famosas galerias da Europa e dos Estados Unidos. Até que afinal o mundo intelectual resgata, com certo atraso e inteira justiça, a excelência dessa arte de grande importância cultural, valorizando o mercado financeiro da fotografia em todo o planeta.



   “Foi-se o tempo em que a pintura reinava soberana nos museus. Agora, as grandes instituições e os colecionadores estão também atrás da fotografia”, garante Rafael Tonon, em matéria da revista Bravo de janeiro de 2012.



   A fotografia entrou nos acervos dos salões mais respeitados e nas coleções particulares, ganhando definitivamente atenção dos críticos e curadores. No Brasil, os fotógrafos já disputam as paredes dos “shoppings”, com a mesma força dos pintores. No ano de 2012, devem ocorrer 32 festivais de fotografia pelo país, do Fest Foto Poa ao Manaus Bem na Foto, no Amazonas.



   Projeto dos fotógrafos paulistanos Cássio Vasconcellos, Lucas Lenci e André Andrade, o Fotospot representa atualmente 24 nomes reconhecidos no mercado, como Mário Cravo Neto e Cláudia Jaguaribe, que em um ano de funcionamento vendeu 460 imagens por preços que variam entre 450 e 2,9 mil reais.



   Acompanho, com interesse e prazer, o trabalho desse talentoso artista que é Gilberto Marcelino, há muitos anos, e sou testemunha da dedicação e dignidade com que fotografa, elevando seu ofício ao mais alto nível da sensibilidade artística.



   Seguindo esse princípio e sem receio de errar, podemos dizer que Gilberto Marcelino pertence ao seleto time de artistas que se inspiram e baseiam sua obra nas raízes nordestinas, emolduradas por Olinda e Recife. Para tanto, ele assumiu o sério compromisso consigo mesmo, de conhecer essas duas cidades com seus bairros, casas, rios, avenidas, ruas, becos e ladeiras, como a palma da sua mão, principalmente sua alma e suas nuances, e com os olhos perquiridores e próprios de um filho da terra, embora nascido no Estado da Paraíba. Quem duvidar que reveja, com atenção, as belíssimas fotografias executadas sob o método de Canvas e Fine Arts que Gilberto expôs recentemente na “Luz Tropical”, no Shopping Plaza. Fotografias que falam por si e emocionam.



   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.



















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ESPERANÇA



Publicado no JC em 14/03/12


 


   Vou passando pela calçada da Rua da Aurora, onde se encontra “estabelecido” o livreiro Paulo, e vejo um livro cuja capa é a foto de um grande veleiro ancorado na Antártida. Me interesso por ele e compro. Trata-se de Shackleton: uma lição de coragem, de Margot Morrell e Stephanie Capparell. A história verdadeira de uma aventura extraordinária comandada por Ernest Shackleton.



   De 1914 a 1916, Shackleton e companheiros sobreviveram ao naufrágio do Endurance, distantes quase dois mil quilômetros da civilização, sem meio de comunicação ou vislumbre de salvação. As temperaturas eram tão baixas que os homens chegavam a ouvir a água congelar. Tiveram que comer pinguins, cães e focas. A situação se agravou, Shackleton partiu para buscar ajuda em heróica viagem de oitocentas milhas através do gelado Atlântico Sul – em um barco a remo. O mais incrível é que todos os tripulantes escaparam em boas condições físicas e emocionais.



   Me lembrei dessa expedição fantástica, que teve também caráter científico e geográfico, lendo as notícias da base brasileira que se incendiou no Pólo Sul. Sendo que naquela época, as condições de transporte eram muito precárias, comparadas às de hoje. A começar pelo velho veleiro esmagado, quando ancorado, pelos icebergs que foram se partindo no verão. Sem o navio e sem meios de comunicação eficientes, os trinta e seis sobreviventes do desastre, entre eles marinheiros, comandantes, pilotos, médicos e naturalistas, não tiveram outra opção senão ficar “morando” em geleiras inóspitas até conseguir socorro na Geórgia do Sul. Confesso nunca ter lido nada parecido. E esse livro tem me ajudado muito a atravessar os momentos difíceis da vida. Penso: se aqueles indivíduos conseguiram sobreviver, por dois anos, naquele inferno, por que não posso esperar mais vinte e quatro ou quarenta e oito horas para resolver um problema importante?



   O legado de Shackleton foi seu exemplo de como perseverar diante de adversidades que parecem insuperáveis. Ao ser perguntado por um diretor de escola que conselho daria a seus alunos, Shackleton respondeu: “A única mensagem que me ocorre para os meninos é: em meio a dificuldade, perigos e decepções, nunca percam as esperanças. O pior pode sempre ser vencido.” Afinal, dificuldades existem para serem superadas.

   P.S.: Para Daniela Karina.



   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.



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PALMADA



Publicado no JC em 07/03/12



    Essa lei contra a palmada não passa de frescura. É equivalente a comparar bitoca com estupro. Uma forma de neofascismo puritano. Muita gente levou pisa de rinchar, quando pequeno, e nem por isso desmunhecou nem meteu-se em falcatruas e homicídios, não guardou mágoas, complexos e recalques. Pelo contrário. Tenho seis filhos, nunca precisei bater em nenhum. Eu disse “precisei”, pois é importante a criança saber que existe um corretivo que lhe poderá ser aplicado em momento justo e oportuno. Que o direito de terceiros está acima de seus caprichos, manhas e cavilações. Menino é feito jogador de futebol: testa a autoridade dos pais como o jogador testa a autoridade do árbitro. Quem vacilar, dança.

    Minha mãe dizia que batia nos filhos para os outros não terem vontade de bater. Os casos de bullying são muito antigos nos colégios e continuam a existir no mundo inteiro. Em recente entrevista à Veja, Rosalind Wisman, escritora americana especializada em bullying, ensina que crianças e adolescentes que agridem e humilham colegas são acobertados em casa – e que as escolas em geral se omitem. Tem razão. Acho que a chave do enigma está aí, na falta de educação doméstica. E faz observações pertinentes (gostou dos “pertinentes”, Jommard?). Ela começa dizendo, o que é verdade, que conflitos nos quais ocorrem abuso de poder e força para demarcar território são tão velhos quanto a própria espécie humana. O sabiá-gongá e o sanhaçu que cantam ao amanhecer nas árvores defronte do nosso apartamento, na Beira-Rio, também delimitam seus territórios, ao cantar, avisando aos outros pássaros que aquele espaço tem dono - é deles.

   Na entrevista, Rosalind diz que o bullying passa a ganhar uma escala que nunca teve antes, enchendo a vítima de vergonha, solidão e medo. E isso é grave e triste, porque demonstra a decadência da sociedade. De seus valores básicos. Ela condena os professores por continuarem “alheios a isso.” E fulmina: “O problema, evidentemente, não se restringe ao ambiente escolar. Ele começa no lar. Só que muitos pais preferem manter-se cegos. Agem como não deveriam.”

   Sua maior preocupação é que esse tipo de manifestação preconceituosa aparece até mesmo nas famílias de gente lúcida, de forma quase invisível. “O bullying nada mais é que uma demonstração exacerbada de aversão às diferenças”. E acrescenta: “As meninas podem ser mais cruéis entre si do que os garotos. Elas têm uma compreensão muito clara sobre como a outra se sente e, com isso, conseguem feri-la com requintes de maldade”. (Noel Rosa: “Pra que mentir, se tu ainda não tens a malícia de toda mulher?”). E termina lamentando que o adolescente recebe hoje o maior privilégio da vida adulta – a liberdade – mas nenhuma das obrigações da idade madura. É preciso dosar o limite entre palmadinha e espancamento. Violência e superproteção. Afeto e castração da personalidade infantil. Carinho e dengo. O respeito ao próximo.

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Pernambucana de Letras Jurídicas.




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PROGRESSO







Publicado no JC em 29/02/12
 





   Sempre que almoço com Geraldo Carvalho, os assuntos em pauta são jóquei e futebol. De vez em quando... deixa pra lá.



   Geraldo morou no Rio pelos anos 50 e 60 e tinha uma farmácia na Gávea. Farmácia frequentada pelos jogadores do Flamengo, tricampeões de 53, 54 e 55 - entre eles, Garcia, Tomires, Dequinha e “Dr. Rubens”. E haja estórias sobre esse pessoal, inclusive o grande treinador Don Fleitas Solich, conhecido como “El Feiticeiro”, pela competência e carisma, que costumava comprar remédio a Geraldo, para seus atletas, pagando com dinheiro de seu bolso. Não se faz mais técnico como antigamente, portanto.



   Morando no Leblon e comercializando na Gávea, Geraldo não perdia jogo do Mengão e corrida no Jockey, onde conheceu o mitológico Luiz Rigoni, o “homem do violino”, líder das estatísticas brasileiras, e os chilenos Ulhôa, Marchant, Irygoni e Emídio Castilhos, bem como os melhores e mais famosos cavalos da época: Gualicho, do stud Almeida Prado & Assunção, Escorial, dos Irmãos Seabra, Quiproquó, de Peixoto de Castro, Carrasco, de Jorge Jabu, Helíaco, de Lineu de Paula Machado, e Garbosa, de Buarque de Macedo, que importou da Argentina Filon, que, pilotado pelo lendário ginete portenho Irineu Leguisano (que montou até os 70 anos de idade, inclusive Arturo A), ganhou o Grande Prêmio Brasil de 1945.



   Falando em Dequinha, os olhos do rubro-negro Geraldo Carvalho brilham: “Seu apelido era passe de veludo”. Meu Deus, passe de veludo! Que meio-campista de hoje tem passe de veludo no futebol brasileiro? Dizem Cruiyff e Guardiola que o time para ser bom, tem que ter zagueiros que saibam passar e saiam jogando e não dando chutão (como o Sport faz, em ligação direta). Foi bom eles acharem isso porque quando digo que Domingos da Guia foi o maior beque de todos os tempos, muita gente não acredita. Já na década de 40, Domingos partia de sua área driblando os atacantes adversários em fintas curtas e avançava com a bola colada nos pés para alimentar o seu ataque.



   Por fim, Geraldo contou que em priscas eras entrevistaram Zé da Columbia, jóquei do prado da Madalena que montava o favorito do Bento Magalhães:



   - Como é, seu cavalo ganha hoje, Zé?



   E Columbia: “Derna que amonto nunca vi tão faci!”

   - E se furtarem o páreo?



  “Donde não ai furto não ai progresso!”



   Como diria o poeta Tomás Seixas, “gênio é isso”.



   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes, Letras e ciências de Olinda.


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MARIA BONITA







Publicado no JC em 15/02/12







   Seus pais tinham uma fazenda na Boca do Rio, local paradisíaco do Recôncavo Baiano. Ela era uma jovem linda, delgada, elegante, morena clara com longos cabelos negros. Como não podia deixar de ser, chamava-se Maria. Maria Jacintha.

   Meu tio Heitor Eduardo trabalhava no Banco do Brasil, no tempo em que ser funcionário do Banco do Brasil dava ao indivíduo prestígio social e profissional. Se um funcionário entrasse numa loja e se identificasse como sendo do Banco do Brasil, levava a loja toda, tal o seu crédito. Além de subgerente do Banco do Brasil, Heitor era beque direito e capitão do glorioso Ypiranga, time mais popular da Bahia à época, envergando um belo padrão amarelo de seda, com listras verticais, pretas, fininhas. Depois, o Bahia foi tomando o posto do Ypiranga como clube mais popular da Boa Terra.

   Numa excursão do Ypiranga a São Thomé de Paripe, região metropolitana de Salvador, Heitor esticou até a Boca do Rio e lá deparou-se, certa manhã, com cena deslumbrante: Maria Jacintha pulando do trampolim para mergulhar na lagoa de águas cristalinas da fazenda. Saindo do banho, ainda molhada, passou por Heitor e seus olhares cruzaram. Foi amor à primeira vista, e, pouco depois, estavam casados para sempre.

   Em entrevista reproduzida no Jornal da ABI, Nelson Rodrigues dizia que já não há amor como antigamente. Que sua tia-avó, esposa de um farrista, aguentou as ressacas do marido até morrer, porque, apesar dos pesares, o casal se amava.

   Morei dois anos na casa de Tio Heitor e Tia Maria, no Farol da Barra, e fui testemunha da ardente paixão que eles curtiram em todos os minutos e horas do casamento. E Tio Heitor, homem digno e de caráter, não era fácil, pois foi criado solto na buraqueira, sem mãe, no meio de boêmios, capoeiristas, pescadores e jogadores de futebol. De Tia Maria nunca se ouviu um palavrão, uma queixa, uma maledicência. Era dessas pessoas inatingíveis, que pairam acima do bem e do mal. Dela, pode-se dizer que “pisava nos astros distraída”.

   A essas alturas, as leitoras dirão, com certo desdém, que Tia Maria era o protótipo de Amélia, a mulher de verdade, de Ataulfo Alves e Mário Lago. Nem tanto. A diferença entre a Amélia da canção e Tia Maria era que “Amélia não tinha a menor vaidade”, e Tia Maria tinha plena consciência de sua beleza natural, autêntica e singular, que dispensava cirurgia plástica, chapinha e maquiagem de qualquer espécie. Maria Jacintha de Aguiar Mattos Oliveira. Maria Bonita.



   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Associação Brasileira de Imprensa-ABI.


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CREPÚSCULO DO ELDORADO



Publicado no JC em 08/02/12




    Nada como um dia atrás do outro e a noite no meio. Até há pouco tempo, as filas quilométricas de pessoas que iam pedir visto no Consulado Americano, sediado na Rua Gonçalves Maia, na Soledade, arrastavam-se lentamente pelas calçadas vizinhas e do quarteirão como cobra faminta. Melancólicas procissões de devotos cabisbaixos e macambúzios, olhares fitando longe, na doce ilusão e vã esperança de dias melhores em outro país, almoçando sanduíche, cachorro-quente e pipoca, pois a maçada era enorme para serem atendidos. Muitas dessas pessoas foram humilhadas por funcionários do consulado, pois em época, ainda recente, o cidadão brasileiro que lá chegasse era, antes de mais nada, terrorista em potencial. Aquela velha máxima: terrorista, até prova em contrário. Um sobrinho meu, que mora em Natal, passou por esse constrangimento quando tentou renovar seu visto de permanência na Florida, onde já participara de um torneio de futsal, defendendo clube do Brasil, sem sucesso.

   Fui procurado muitas vezes por amigos e parentes de outros Estados que precisavam de autorização ou renovação para viajarem pros EUA. Queixavam-se de que vinham de outra cidade e tinham despesas com passagem e hospedagem, com grande demora para obter visto, e nem sempre conseguiam, tantas eram as exigências “burocráticas”. Para decepção desses amigos e parentes, eu respondia e continuo respondendo que bateram na porta errada, porque não tenho o menor prestígio no Consulado Americano.

   De repente, tudo mudou (nada como o vil metal) e ressuscitaram a velha política da boa vizinhança, planejada por Roosevelt na Segunda Guerra e estrelada por Carmen Miranda. Tio Sam faliu e, quem diria, precisa do dinheiro dos tupiniquins, para socorrer sua combalida economia, levada à bancarrota, entre outras maracutais, pela especulação dos banqueiros, que em nada contribuem para o bem estar, o progresso e a riqueza de sua nação.

   Agora, as filas caminham, com celeridade nunca dantes navegada, registrada e suspeitada. Os aventureiros não precisam mais de restos de sanduíche e cachorro-quente. Breve vão se fartar de Coca-Cola e de Disney. Os otários e desvalidos não mais cochilarão nas esquinas dos passeios na véspera do seu ingresso na sede do consulado. Em vez de funcionários prepotentes e arrogantes, vemos hoje servidores atenciosos, charmosos e risonhos. Ninguém mais é ofendido no seu rincão. O que se ouve ali é “pois não, mister”, pra lá, “mister”, pra cá, “boa viagem, os Estados Unidos o acolherão com muito prazer” - quase aos sussurros.

   Agora, nenhum chanceler brasileiro será obrigado a tirar sapatos e meias em público, para ser revistado, na Alfândega do aeroporto de Miami, como foi coagido a fazer Celso Lafer, Ministro das Relações Exteriores do governo de Fernando Henrique Cardoso. Se vivo fosse, o romancista Zé Lins do Rego, apesar de “mestiço e comunista”, não teria seu visto negado pelos nossos irmãos do Norte. Seria recebido de braços abertos pela Estátua da Liberdade. Como diria uma amiga minha, justificando o novo amor, apesar de recém divorciada: “A fila anda...” Sim, agora, anda. Mas menino!

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Federação Internacional dos Jornalistas.



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NULIDADE



Publicado no JC em 02/02/12

   Gosto muito de dois escritores americanos: Stephen King, de Portland, e David Mamet, de Chicago, ambos nascidos no mesmo ano de 1947. Gosto também da australiana Elfriede Jelinek e do escocês James Kelman, de Glasgow. Todos jovens.

   Sei que o leitor não tem nada a ver com minhas preferências literárias, estou desabafando, porque minhas filhas, uma de 20, outra de 11 anos, dizem que só cito Machado de Assis, Conrad e Dostoievski. E que não curto os compositores e cantores modernos. Não é bem isso. Quando falo em Machado de Assis, Conrad e Dostoievski é para confessar que eles são os meus autores de cabeceira. Aqueles que você sente saudade quando passa um tempinho sem os ler. Aí, bate a nostalgia e volto “aos quadros constitucionais vigentes”. Agora mesmo estou lendo, acho que pela quinta vez, Luís Soares, conto do Velho da Montanha. Onde vou encontrar uma análise psicológica do homem melhor e mais profunda do que nesse conto? Tem uma parte, logo no começo, onde Machado diz que Soares poderia ser um perverso, mas é “apenas uma grande nulidade.” Pode haver definição mais contundente de uma pessoa do que essa? Nulidade? E Soares, que trocava o dia pela noite, por achar que a noite, é mais fresca, melhor pra trabalhar e que terminou se suicidando, considerava quatro coisas absolutamente inúteis neste mundo: um jornal, as missas, a Câmara dos Deputados e as obras dos poetas.

   Me lembrei desse conto ontem, quando li a contestação de Antônio Carlos Magalhães num processo civil a que respondia, na Comarca de Salvador, sendo o autor um contraparente meu. É que, no fim da peça, Toninho Malvadeza diz que o requerente “não passa de uma nulidade”.

   Eis uma palavra que sempre me impressionou: “nulidade”. Quando minha mãe queria criticar alguém, invectivava: “Aquilo é uma nulidade!” Mas o que seria um individuo que merece essa qualificação: “nulidade”? Hitler, que tanto mal fez à humanidade, promovendo o holocausto, foi um monstro, mas dele, como gostava de brincar Renato Carneiro Campos, nunca se poderá dizer que foi uma nulidade. Nulidade não tem força nem cacife para mudar o curso da História.

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é do Instituto Histórico de Olinda.



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Lord Jim?



Publicado no JC em 25/01/12
 


   Uma das facetas do gênio é “prever” o futuro - antecipar-se aos fatos históricos. Tomás Seixas gostava de dizer que o poema “H”, de Arthur Rimbaud, era uma premonição da bomba de hidrogênio.

  São muitos os exemplos na literatura universal e nas artes plásticas em geral. O comportamento irresponsável do comandante Francesco Sheltino, do transatlântico Costa Concórdia, que naufragou no litoral da ilha italiana de Giglio, abandonando o navio no momento da tragédia e deixando mais de quatro mil pessoas largadas à própria sorte, em pleno século 21, remete, mal comparando, a Lord Jim (sendo Lord Jim um atormentado e Sheltino um cínico), o mais fascinante e patético personagem de Joseph Conrad, homônimo do romance. No livro, Conrad conta a saga do marinheiro que, ainda jovem, sonhava ser herói, quando tripulante de um veleiro, e que, instado pelo seu capitão, se acovardou e desembarcou durante uma tempestade. Isso, na segunda metade do século 19. Não há como não se lembrar de Lord Jim, ao tomar conhecimento desse desastre do Concórdia. Digo “mal comparando”, porque Lord Jim era um simples marujo de veleiro, subordinado ao seu capitão, e Sheltino, comandante de moderna embarcação de luxo, com sofisticada aparelhagem de segurança de navegação.

   Desastre sempre houve e vai haver em terra, mar e ar. Lembro de dois naufrágios famosos e esquecidos (ah, o tempo!): o do paquete inglês (ou francês?) Magdalena, na entrada da Baía da Guanabara, no começo dos anos 50 - na ocasião espalharam que o capitão estava bicado – e o do cargueiro Cabo Verde, cujo casco ainda se encontra submerso, na boca da barra da Baía de Todos os Santos, entre o Farol da Barra e o Morro de São Paulo.

   O que mais impressiona nesse acidente do Concórdia é a imprudência do comandante. Dizem as notícias que no momento do desastre ele bebia champanhe na companhia de amigos e de uma bela mulher. Nada contra, mas minha mãe já dizia que cada coisa na sua hora. E se ele queria farrear, que passasse o comando da embarcação para seu subordinado imediato. Os boatos são de que o rapaz é complicado: arrogante, grosseiro, ditatorial, egocêntrico etc. Assim, cabe grande parcela de culpa ao armador, que promove uma figura tremebunda dessa para comandante de um dos mais belos navios do mundo. Esse desastre ainda vai dar muito o que falar. Torço para que o Concórdia seja salvo e recuperado.

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Federação Internacional dos Jornalistas.






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NOSTALGIA COLONIAL







Publicado no JC em 18/01/12







 
   Houve tempo em que os grandes jogadores da Bahia e de Pernambuco migravam para os times do Rio e de São Paulo, ainda jovens, num movimento idêntico à exportação de craques brasileiros para o exterior.

   Citando apenas alguns, de Pernambuco para o Sul: Djalma, Pirombar, Adelson, Ilo Caldas, Amorim, Ademir, Vavá e Almir - do Sport pro Vasco; Elcy e Geo, pro Palmeiras; Manga e Mainha, pro Botafogo, e Magri pro América. Mais: Aldemar, Zequinha e Gildo, do Santa Cruz pro Palmeiras e Rivaldo, pro Mogi Mirim. E ainda: Rinaldo, do Náutico pro Palmeiras; Nado, pro Vasco; Orlando Pingo de Ouro e Jaminho, pro Fluminense, e Bita, pro Nacional de Montevidéu; Bodinho do Íbis pro Internacional; Cido, Tomires e Dequinha, do América pro Flamengo.

    Da Bahia: Palmer, do Galícia pro Palmeiras; Pedro Amorim, Léo e Washington, do Bahia pro Fluminense; Maneca, Jorge e Dario, pro Vasco; Isaltino, pro Botafogo, e Bobô, pro São Paulo; Flávio e Alencar pro Palmeiras; Alberto Leguelé e Beijoca pro Flamengo; Servílio, do Ipiranga pro Corinthians; Natalino, Ranulfo e Quarentinha II, pro América; Quarentinha, do Vitória pro Botafogo; Edson,(da Cacareco), pro América; Nadinho, pro Bangu; Juvenal, pro Fluminense; Nandinho, Gringo, Toninho, Onça, Edmilson, Charles, Bebeto e Vampeta, pro Flamengo; Tuta, do Guarany, pro Vasco, e Zague, do Botafogo da Bahia pro Corinthians. A lista seria infindável e vai aparecer leitor dizendo que faltam fulano e cicrano. Isso sem falar dos mais modernos e famosos como Luiz Chevrolet, Aldair, Júnior Baiano e Daniel Alves.



   Estou recordando essa turma da velha guarda pra falar em Arquimedes. Que foi um lendário centro-avante do Bahia, que eu vi jogar dos anos 41 a 49. Ele formou numa linha de frente célebre do Esquadrão de Aço: Gereco, Cacetão, Evilásio, Arquimedes e Zé Hugo. Depois veio atuar em Pernambuco, onde fez sucesso. O delegado de polícia aposentado Geraldo Carvalho conheceu essa turma toda.



   Arquimedes era um negro ritinto, magro, estatura mediana e pernas arqueadas, que sabia tudo de bola e todas as malandragens do futebol. Habilidoso e driblador, tornava-se alvo das botinadas adversárias, das quais escapava com precavidos pulos felinos. Campeão pelo Sport em 49, quebrou a perna de um cafajeste que o chamou de negro safado. Na segunda vez, fraturou a tíbia de um perna-de-pau que também o insultara, em Natal, se não me engano. Depois dessas, sua fama se espalhou e nunca mais foi agredido por ninguém.



   Me lembrei do saudoso e catimbeiro Arquimedes agora, ao ler a notícia de que o atacante uruguaio Suarez, do Liverpool, ofendeu Evra, do Manchester United, dizendo que o chutou “porque você é negro”, acrescentando: “Eu não falo com negros”. O pessoal do Liverpool tem antecedente de racismo. O Flamengo foi decidir a copa dos clubes campeões, em Tóquio, em 81, seus jogadores desceram do ônibus tocando batucada. Quando a delegação do Liverpool avistou os rubro-negros, cantando e dançando, zombou: “Chegaram os crioulos com suas macumbas!”. Mas se deram mal: 3 x 0, já no primeiro tempo, com direito a olé. Zico e Nunes acabaram a brincadeira. Uruguaios e argentinos sempre se referiram a nós como macacos. Quando o Uruguai ganhou do Brasil em 50, o mulato Obdúlio Varela escolheu Bigode, o mais negro do nosso time, para dar um tapa na cara. Por que ele não agrediu o gaúcho Chico, o nosso ponta-esquerda branco e valente? Por essas e outras, Nilton Santos se recusa a participar de qualquer homenagem a argentinos e uruguaios: “Eles não merecem, são uns moleques.”



   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Associação Brasileira de Imprensa-ABI.




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DECANO DA IMPRENSA




Publicado no JC em 11/01/12



   Conheci Djalma Costa faz tempo, quando ele era chefe de secretaria de Arthur Maciel, juiz federal em Pernambuco, sendo que a sede da Justiça Federal era na Rua da Moeda. Não sei quem era melhor, mais humano e educado, ele ou Arthur Maciel.

   Depois vim a conhecê-lo bem, quando foi presidente da Academia Olindense de Letras. Se não me engano, falecido recentemente aos 95 anos, Djalma era o decano da imprensa pernambucana. Falava inglês fluentemente e tinha sólida cultura literária e humanística, gostando muito de História do Brasil. E em cada reunião, na Academia, dava aulas de cultura geral em doses homeopáticas e sem pedantismo. Sempre tratou os acadêmicos com cortesia e respeito, e suas decisões, no comando da Academia, eram justas e de bom senso.

   Ex-jornalista militante, trabalhou em vários jornais do Recife, inclusive no Diário de Pernambuco, entre as décadas de 40 e 60, quando tornou-se amigo, entre outros, de Mauro Mota, Luiz Maranhão e do lendário cronista Luís Aiala. Ele se orgulhava de ser jornalista e escrevia muito bem. Seus discursos, na presidência daquele sodalício (gostou do sodalício, Ivanildo?), na posse dos acadêmicos, eram maravilhosos, e ele conduzia a cerimônia com competência e indisfarçável satisfação. Aposentado, passava pelo nosso escritório para o cafezinho e me presentear com livros raros e saborosos. Afável, nunca o vi levantar a voz para alguém, e era dono de um humor levemente irônico.

   Por motivo de força maior, não pude ir à posse recente do escritor Manoel Neto Teixeira, na presidência da Academia Olindense de Letras. Pouco depois, me encontrei com Djalma e seu filho, no restaurante de Geraldo, em Santo Amaro. Ele almoçava bode guisado, e se dirigiu a mim lamentando, polidamente e um tanto magoado: “A única pessoa que não podia faltar era você”. E tinha razão...

   P.S.: E-mail da leitora ilustre Liliana Falangola: “O professor alemão a que você se refere (ou a quem) é o Berthold Zilly, que traduziu Os Sertões, em 1994, com nome de guerra Krieg im Sertão”. Liliana citava minha crônica Rapadura, aqui publicada em 14/12/11.



   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Olindense de Letras.


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CRIMES







Publicado no JC em 04/01/12 







   Há crimes e crimes. Ninguém pode garantir que jamais cometerá um homicídio.



  Vai que o marido encontra a mulher na cama com o urso e mete bala nos dois, possuído de violenta emoção. Nesses casos, se não se justifica, o crime se explica. Legítima defesa da honra, etc. Tormentosa questão.



   Há muitas outras circunstâncias em que o crime se justifica, deixando até de ser considerado crime. O estado de necessidade, por exemplo. O navio em que você viajava afundou, você está no bote salva-vidas, cuja lotação máxima é de vinte passageiros, o bote já está lotado, eis que se aproxima nadando, exausto e desesperado outro náufrago. Ele alcança a beirada do bote com as mãos e pede socorro. Você, piloto do bote, responsável pela sobrevivência de seus comandados, examina a situação com bom senso, conclui que a embarcação não suporta mais peso e proíbe, até com energia, se necessária, a subida do náufrago a bordo. Sim, porque, na prática, seria trocar a vida de vinte pessoas por uma.



   O estado de necessidade é, portanto, o sacrifício de um interesse juridicamente protegido para salvar do perigo atual e inevitável o direito do agente ou terceiro, desde que outra conduta, em situação concreta, não seria exigível. Ainda como excludentes de ilicitude temos a legítima defesa (em geral) e o estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito(art.23 do Código Penal). Se presentes uma das causas relacionadas nesse artigo, afastado está um dos elementos do crime, que é a contrariedade da conduta ao direito. Ensina Maggiore que o conceito de justificação não é particular e exclusivo do direito penal, pertencendo ao próprio direito, tanto público como privado, pois é faculdade do ordenamento jurídico decidir se uma relação determinada é contrária ao direito ou está de acordo com ele. A excludente de antijuridicidade torna lícito o que é ilícito.



   Como nota o leitor, o conceito de crime é artificial, independe de fatores naturais, constatados por um juízo de percepção sensorial, uma vez ser impossível apontar uma conduta, ontologicamente, qualificando-a de criminosa. Na verdade, a sociedade é a criadora inaugural do crime, qualitativo que se reserva às condutas ilícitas mais graves e merecedoras de maior rigor punitivo.



   Agora mesmo surgiu um tipo de crime hediondo e torpe, ainda não previsto na nossa legislação penal, merecendo urgente atenção. Trata-se de crime escroto. Consiste no fato de um individuo desajustado, covarde e mesquinho, sem escrúpulo e sem caráter, “brincar” de perturbar os goleiros e comandantes de aeronaves de qualquer espécie, tentando confundi-los com raio laser daquelas canetinhas compradas em qualquer banca de revista.



   Segundo os técnicos, esse laser, cujo raio de ação alcança até dois quilômetros, pode cegar o piloto de um avião a jato de grande porte que, desgovernado, cairá com centenas de passageiros. A velha luta entre o bem e o mal, objeto da obra de Dostoiévski, Joseph Conrad e Melville. A conferir.



  *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Pernambucana de Letras Jurídicas.






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AMARELOU




Publicado no JC em 28/12/11




   Tem nego aí deslumbrado com o Barcelona, mas, já no século passado, um treinador pernambucano, de pele morena, chamado Gentil Cardoso, ensinava aos seus pupilos (gostou de pupilos, Og?), no começo dos anos 40: “Quem desloca recebe e quem pede tem preferência”. Não é esse o princípio básico do esquema catalão? Não há time invencível, por melhores que sejam sua tática, técnica e jogadores. Sua atuação depende, em parte, do comportamento do adversário. E do contexto, digamos, histórico que atravessa.

   Tudo começou na Copa de 50, no Maracanã. Formado por grandes craques, feito Bauer, Danilo, Maneca, Zizinho e Ademir, e vindo de um histórico baile aplicado na Espanha (6 x 1), apelidada de “La fúria”, o escrete brasileiro perdeu, em casa, para a raçuda e desleal equipe uruguaia. Com direito a tapa na cara etc.

   Em 54, na Suíça, o “imbatível” esquadrão húngaro, um dos maiores de todos os tempos, apelidado de “Mágicos Magiares”, capitaneado pelo major Puskas, auxiliado pelo homem-gol Sandor Kocsis, que aplicou sonoras goleadas nos inimigos, entregou a final à Alemanha de Fritz Walter (3 x 2), numa batalha conhecida como “O Milagre de Berna”.

   Em 58, é bom lembrar, a franca favorita era a União Soviética. Diziam-se maravilhas dos russos, inclusive que eles eram treinados pelos mesmos fisioterapeutas dos seus astronautas. Um “onze científico”. O Brasil, de Garrincha e Pelé, triturou esse quadro das galáxias logo após o ponta-pé inicial, com dois minutos tidos até hoje como os mais fantásticos e eletrizantes do futebol de todas as épocas.

   Em 74, a seleção holandesa, uma máquina de jogar, ganhou de todo mundo, e, também tida como invencível, comandada pelo lendário Johan Cruyff, caiu diante da Alemanha, de Franz Beckenbauer, de virada, por 2 x 1. Batizada “Laranja Mecânica”, seu estilo de jogo, criado por Rinus Michels, foi precursor do atual Barcelona, tenazmente aperfeiçoado, ao longo dos anos, por Guardiola. Mas enfrentou uma alemã corajosa e destemida, que combateu, metro por metro, o campo todo, não deixando espaço para a Holanda impor sua troca de passes e deslocamentos rápidos.

   O Santos se limitou a apreciar o Barcelona treinar e a reverenciá-lo. Enquanto Messi e Daniel Alves pegavam as bolas livres, Neymar não conseguiu produzir nada porque, sempre que lançado, era cercado por dois ou três rivais que lhe obstruíam a passagem. Na primeira que Mascherano dividiu, deu uma porrada em Borges e levou cartão. Enquanto isso, fugindo de seus antecedentes característicos, de guardar brasas em pote, Edu Dracena e Durval calçaram chuteiras de veludo e subiram aos céus, beatificados. O Barcelona ataca, marca e defende com entradas fortes, porém leais. O Peixe nem atacou nem defendeu (se rendeu). E encarnou, como há muito não se via, o velho complexo tupiniquim de “vira-lata”, tão decantado e repudiado por Nelson Rodrigues. Ouso dizer: o trançado espanhol é monótono e chato. Dá até sono. Bonito era o futebol de Pelé, Coutinho, Pagão e Jair Rosa Pinto, penetrando na área, na vertical, em alta velocidade, belas tabelas, em direção à meta. Bonito jogava Heleno de Freitas. O Barça é melhor, mas o Santos amarelou - eis a verdade. 4 x 0 foi demais.

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.



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FIO DA NAVALHA


Publicado no JC em 21/12/11



   Quase todos os fins de tarde dos sábados e domingos me encontro com o advogado Orlando Alves Corrêa na pracinha Luiz Bandeira na Madalena. Orlando é um dos homens mais cultos e modestos que conheço, e pouca gente tem conversa tão agradável e instrutiva. Oriundo de Campina Grande, mora no Recife há 54 anos - e já passou dos oitenta.

   Magro, ascético, não fuma, não joga e não bebe, tem saúde perfeita para a idade, trabalha ainda os dois expedientes, diariamente, em seu escritório, anda de ônibus e não come em restaurante. Sabe um processo civil besta e sua diversão preferida são os livros, que compra nos sebos e livrarias. Seu inglês é fluente, sem pedantismo, pois é cidadão imune a vaidade. Não conheço alguém mais digno e discreto, sem ser chato. Por aí o leitor já fica sabendo quanto aprendo com ele, em literatura, história do Brasil e universal, geografia, religião e filosofia de vida. Orlando sabe casos do arco-da-velha, porque foi funcionário da Ford por mais de trinta anos. Tem senso de humor apurado e dá gargalhadas quando conta episódios jocosos e ridículos de políticos do interior, executivos e intelectuais. Nossa conversa, que começa ao entardecer, nos bancos da Avenida Beira-Rio, entra pela noite.

   Domingo passado, o tema que surgiu espontaneamente no nosso papo foi, não sei por que, o crepúsculo. Ele disse que, trabalhando na Ford, viajava, solitário, pelas estradas de barro e areia do Nordeste, percorrendo as cidadezinhas do sertão. E que grande angústia, um sentimento opressivo, o acometia quando, ao volante do carro, era surpreendido pelo vento frio do crepúsculo, em caminhos ermos e esquisitos das regiões do Crato e do Cariri. Nesse momento, ao cair da tarde, o manto da noite encobria gradativamente a caatinga, as capoeiras, as matas, serras e plantações ao longo das rodovias e os pássaros voavam em algazarra, em bandos, à procura de seus ninhos. E essas cenas, que nunca se apagaram de sua memória, traziam-lhe profunda amargura, que lhe oprimia o peito e dilacerava o coração. Essa estranha melancolia só dissipava quando a noite declinava em sua plenitude, e os faróis do carro furavam a escuridão com seus fachos de luz. Isso talvez explique facetas da nossa existência, feito as camadas insondáveis do cérebro humano que, de repente, se tangenciam.

   Aproveitando o assunto, disse a Orlando que o crepúsculo é um dos mais belos e misteriosos fenômenos do universo, porque é impossível delimitar o exato momento em que o dia termina e a noite começa, como o fio da navalha que separa o Bem do Mal. Vindo esta semana de Natal para Recife, por terra, fui despertado pelo pôr-do-sol de Canguaretama, à nossa direita. A tarde estava clara, o céu azul, e o sol, aumentando de tamanho à medida que se punha, tornava-se escarlate, até desaparecer na linha do horizonte, destacando, em terceira dimensão, o gado Nelore e Guzerá que ali pastava. E me lembrei do crepúsculo mais bonito que conheço, o sol se escondendo por trás da Ilha de Itaparica, após nascer no mar de Itapuã, cruzar, em diagonal, o centro de Salvador, iluminando a baía de Todos os Santos, e mergulhar na desembocadura do rio Paraguaçu.

   Para encerrar, Orlando recordou um soneto de Antônio de Azevedo Mangabeira, poeta nascido em Macaíba, no Rio Grande do Norte, segundo Kléber de Carvalho Bezerra e Valério Mesquita, e radicado na Paraíba, sobre o crepúsculo: “Faça-se a luz e Deus assim dissera/ e o sol surgiu sorbebo no horizonte/ iluminando tudo e sendo a fonte/ de vida, de amor, de primavera.” E ao findar, diz Mangabeira: “Em ti oh natureza, há sempre festa/ de mim, que da vida nada resta/ nunca termina um triste entardecer.”

   Beleza!



   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.


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RAPADURA



Publicado no JC em 14/12/11


   Tradução sempre foi tema, debate e conversa de intelectuais. O poeta Thomas Seixas, que costumava ler os clássicos ingleses, franceses, italianos e espanhóis no original gostava de falar sobre o assunto. Comprei a coleção de luxo completa de Balzac, da Globo, versão de Paulo Rónai, por sua recomendação. Ele dizia que quem melhor traduzia Shakespeare em Pernambuco era seu amigo Samuel MacDowell. Rubem Braga interpretava os franceses. Otto Maria Carpeaux e Clarice Lispector, também.

   Abro o JC de domingo, dia 4, e leio excelente entrevista com Rubens Figueiredo, tradutor de Tolstói. Rubens começou a estudar russo com 18 anos, e agora lança, pela Cosac Naify, a sua hermenêutica de Guerra e paz, obra prima de Tolstói, diretamente do idioma nativo para o nosso. Rubens, que já havia traduzido Anna Kariênina e Ressurreição, diz coisas interessantes nessa entrevista. Principalmente para o leigo que acha tradução trabalho fácil, bastando apenas converter literalmente o texto, ao pé da letra, digamos. Mas não é assim. Em certos casos, a tradução depende de um mergulho profundo na produção do escritor traduzido. Figueiredo já estava familiarizado com algumas particularidades da linguagem e pensamento de Tolstói quando pegou Guerra e paz. Tinha formado pelo menos a base de uma visão crítica a respeito do que se costuma dizer e escrever sobre o autor. E acrescenta que é esse o ponto chave a ser seguido por qualquer ensaísta. Ensina, com razão, que “sem alguma noção crítica acerca do contexto em que a obra foi escrita, do que estava em jogo na época, da relação entre a literatura russa e a sociedade do país e, por outro lado, entre a literatura russa e o conceito de arte que era apresentado pela Europa como um valor universal, a tradução de um livro como esse vai necessariamente perder uma parte vital de seu significado.”

   Vendo essa matéria, me lembrei de um artigo que li há alguns anos, de um professor alemão, cujo nome esqueço. Nesse artigo, o gringo declarava que, para traduzir Os Sertões, lera cerca de 50 estudos sobre a criação de Euclides da Cunha, mas achou que só isso não bastava. Ele teria que conhecer pessoalmente o palco da guerra, os hábitos de seus habitantes, de seu povo, dos sobreviventes da tragédia. Numa boutade curiosa, confessava que para conseguir traduzir título de estilo tão peculiar e difícil, com vocabulário riquíssimo, contendo inclusive termos regionais, teria que comer charque, buchada, macaxeira e rapadura nas caatingas nordestinas. Se comeu, não sei.

   A cuidadosa técnica desse erudito acadêmico germânico vem ao encontro da opinião abalizada de Thomas Seixas e ilustra o comportamento de Rubens Figueiredo, cuja tradução de Guerra e paz, para o português, tem sido muito elogiada.

   P.S.: Amanhã, 15, às 19h, lançamento de Poemas de Pé Quebrado, de Tânia Carneiro Leão, no Paço Alfândega.

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.



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BEIJOS




Publicado no JC em 07/12/11




    Estou chegando de viagem e as manchetes exploram a prisão de Marcelinho Paraíba. Não tenho procuração para defendê-lo, mas sou um cara, modéstia à parte, refratário a frescura. Na minha época, estupro exigia conjunção carnal contrária à vontade da mulher, fosse ela congregada Mariana, esposa fiel, locatária da Rua da Guia, zona que agasalhava as mariposas desamparadas e decadentes. Hoje, qualquer beijinho na boca é estupro. Muito bem. Imagino o trabalho estafante dos chefes de polícia Manoel Carneiro e Francisco Jardim, assessorados por Antônio Feitosa, enfileirando camburões para embiocar os foliões olindenses que beijarão as moças no próximo Carnaval de Olinda. Umas até gostam, dependendo da carência e do charme do cafajeste, pois já antes de Cristo, havia a ancestral atração sexual entre o macho e a fêmea. Será que o Aníbal Bruno e o Cotel têm vaga pra tanto tarado?

    Nesse caso de Marcelinho, o delegado envolvido no affair confessa ser companheiro de farra do craque, com quem costuma sair para beber. Note-se que o beijo, na irmã do tal delegado, segundo notícias, deu-se por volta das 4h30, no auge da orgia alcoólica, portanto. E, conforme a sabedoria popular, "c. de bebo não tem dono". Quem topa uma parada dessa deve arcar com as consequências. Quando o uísque sobe, os instintos são automática e progressivamente liberados. Depende da quantidade de cana ingerida e da resistência do indivíduo ao álcool. Cada um sabe de seu limite. Não estou justificando a investida (se houve) de Marcelinho a ninguém, mas entendo que uma mordida nos lábios deveria ser qualificada apenas como agressão física e lesão corporal. Morro pensando assim. Se a "vítima" estivesse tirando o terço na missa, isso não aconteceria.

   E o caso Mike Tyson? O famoso boxer negro foi condenado por estupro, nos Estados Unidos, acusado de molestar uma jovem. Pergunta-se: o que queria essa inocente donzela, de madrugada, sozinha, num quarto de hotel com um sujeito de péssimos antecedentes? Ela procuraria o lutador se ele fosse pobre e anônimo? Nenhum juiz com quem conversei sobre esse assunto achou que houve estupro, e levava o episódio na troça, mas o puritanismo americano não tem limite. Pena que esse puritanismo esteja chegando ao Brasil, de forma disfarçada, hipócrita ou não. Vou oficiar ao presidente do Galo da Madrugada para ele abrir uma "sindicância" e identificar a colombina que me beijou, com sofreguidão, num desfile do clube em 1998, em plena Rua da Concórdia. Juro pela felicidade dos meus filhos! Pena que a lei não retroage. Nesse caso de Marcelinho, o tira que o prendeu estava cheio do pau. Segundo a imprensa, todos os participantes da festa eram amigos entre si. Nada foi feito em terreno baldio, debaixo da ponte e nas caladas da noite. No Rio de Janeiro, as meninas que assediam jogadores de futebol ricos são apelidadas de "Maria Chuteira". Dão a eles, depois querem casar ou indenização. No mais recente bacanal de Ronaldinho Gaúcho, em seu apartamento, da Barra da Tijuca, as piranhas enfrentaram os seguranças e penetraram na marra. Pra rezar?

   P.S. – No próximo dia 15, das 18h30 às 21h, Roberto Cavalcanti de Albuquerque estará lançando seu mais novo livro Nabuco e outros temas, pela Bagaço, no Museu do Estado. Imperdível.

   * Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Pernambucana de Letras Jurídicas





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DAMA DA CANÇÃO











Publicado no JC em 30/11/11









   Antigamente, dizia-se que a grande dama da canção brasileira era Elizeth Cardoso, também chamada de “A Divina”. Lembro-me de Elizeth no Canavial D’rinques, cantando para um grupo fechado de amigos. Nessa mesma noite, ela se apaixonou por um jovem sambista pernambucano, cujo nome esqueço, e o rebocou para São Paulo, onde morava. Tinha também quem dissesse que a grande dama da MPB era Carmem Costa, minha cantora preferida. Mas Paulo Alberto Ventura acha que é Alaíde Costa, com o que concorda o poeta Garibaldi Otávio, o poeta Gari, da nobre Capunga.



   Começando sua carreira artística no A raia Miúda, de Renato Murce, Alaíde consagrou-se em 1964 com Onde está você?, marco da voz que embalou casais. Carioca, filha de Ermínio Silveira e Manuela Costa Silveira, Alaíde tem quinze discos gravados e participou dos principais programas de televisão e rádio, no eixo Rio-São Paulo, cantando também em festivais internacionais.



   Tornou-se profissional em 1956, assinando contrato com o Dancing Avenida, para ser “crooner” de orquestra, substituindo Ângela Maria. Em 1959, aconselhada por João Gilberto, seu admirador, entrou no movimento da Bossa Nova e transferiu-se da Odeon para a RCA Victor, onde gravou Tom Jobim, Vinícius de Moraes, João Donato, Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli. Em 1960, tornando-se amiga e parceira de Geraldo Vandré, cria composições de Aloísio de Oliveira, Oscar Castro Neves, Luvercy Fiorini, Nilo Queiroz e Billy Blanco.



   Em 1972 e ao lado de Milton Nascimento, Alaíde volta a sua antiga gravadora, Odeon, para participação especial no antológico álbum Clube da Esquina. Nele, ela e Milton interpretaram em dueto o samba Me deixa em paz, de Monsueto e Airton Amorim.

   Ainda tenho em minha pequena discoteca alguns compactos e LPs dessa maravilhosa estrela, entre eles Alaíde Costa & Oscar Castro Neves e Águas vivas – Alaíde Costa canta Ermínio Bello de Carvalho. Suas gravações que mais gosto são: Estrada do Sertão, de João Pernambuco, Doce de Côco, de Jacob Bittencourt e Pressentimento, de Elton Medeiros.



   Sabendo que Alaíde estará em breve no Recife, Garibaldi Otávio escreveu esses versos em sua homenagem, dando o título de Pássaro ao poema: “Gosto da tua voz como quem gosta/ do pêssego e dos seus veludos. Mil/ bemóis te acendem a garganta quando,/ pássaro, derramas sonhos mudos,/ modulações de mel e amor sutil./ A canção se prepara em partitura,/ o silêncio desliza, arpejos finos/ se acordaram, acordes se misturam,/ solfejos se combinam – emoções/ que rimam tensas paixões justapostas./ De repente, teu coração se espanta,/ o peito se abre no ar delicado. Trinos.”



   P.S.: Telefonemas de Rafael Schulman e Amaral Dutra dizendo que Chico Alves morreu na Via Dutra e não na Estrada de Santos, conforme me enganei na crônica Favela.



   * Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.



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FAVELA



Publicado no JC em 23/11/11



    Pouca gente sabe por que os morros do Rio de Janeiro são conhecidos como favelas. A origem é a planta nordestina do mesmo nome, comum no sertão, principalmente na antiga Canudos. Os nordestinos fugidos da seca, da inclemência do clima árido (gostou da “inclemência”, Zé Cláudio?), da fome e da perseguição da polícia, alguns deles marginais, pistoleiros e bandidos, foram habitar os morros do Rio, que, por isso, passaram a ser chamados de favelas.

    Morando no Rio, em priscas eras, peguei o crepúsculo das favelas românticas. Ao pé da Rua Viúva Lacerda, em Humaitá, havia um morro onde jogávamos pelada e empinávamos papagaio. Nada dessa violência de hoje. Ainda favelas que inspiravam compositores da pesada feito Roberto Martins com o lindo samba Favela (“(...)favela que mora no meu coração”), Hékel Tavares (“No Carnaval me lembro tanto da favela, onde ela, morava”), Ary Barroso, Cartola...

    À noite meu sono era embalado pelo som dos trombones de vara, o repicar dos tamborins, o gemido das cuícas. E acompanhava o desfile das mulatas que haviam dançado a noite inteira, em seus vestidos colantes de rabo-de-peixe, descendo a ladeira. E invejava os donos dos cadilaques conversíveis e de outros carrões importados que iam buscá-las ao amanhecer.

   A maioria dos malandros de morro torcia pelo Flamengo, cuja sede da Gávea era ali perto, distante uns dois quilômetros, vizinha ao Jockey Club, que ostentava um campinho de gramado impecável e muito bem tratado. Nosso time de Humaitá, cuja foto ainda guardo com carinho, tinha o privilégio de jogar ali, contra os das redondezas, por favor especial de um ministro chamado Oswaldo Aranha, atendendo a pedidos de tio Péricles Madureira de Pinho, dono da casa onde eu morava com meu saudoso irmão Carlos Aloysio e primo Bernardino. Meu cunhado Kleber Bezerra reforçava a equipe.

   Época da célebre briga de Dalva de Oliveira com Erivelto Martins, da morte trágica de Francisco Alves em acidente de automóvel, na estrada de Santos, e da máquina de futebol do Mengão: Garcia (Chamorro), Tomires (Leone) e Pavão; Jadir, Dequinha e Jordan (Beto); Joel (Paulinho), Rubens (Duca), Índio (Evaristo), Benitez (Dida) e Esquerdinha (Babá). Época dos lendários cavalos puros-sangues, Gualicho e Platina. Que diferença do Rio e morros de hoje, território de traficantes de droga e de milícias do crime! Faço votos de que as favelas pacificadas voltem a inspirar grandes sambistas. As notícias são de que a classe média começa a ocupar a Rocinha.



   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Associação Brasileira de Imprensa-ABI.




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A VERDADE MÉDICA




Publicado no JC em 16/11/11








    Não há dúvida de que o câncer é doença terrível. Costumam dizer que ele é um mal democrático porque não escolhe vítima, pega qualquer um, independentemente de classe social, profissional, religião, raça e cor. Agora mesmo estão com câncer o presidente da Venezuela e o do Paraguai, além de Lula e Dilma. Há também outra doença horrível, a depressão, porque ela é o resumo de todas as outras, sem ser nenhuma delas, e pode matar. Vai comendo as pessoas pela beirada, até derrubá-la de vez. Em casos graves, precisa de acompanhamento médico constante e especializado.



   Há alguns anos, fui convidado pelo cardiologista Maurílio Rodrigues para fazer uma palestra para um grupo de clínicos do Hospital Português. E comecei dizendo que a "verdade médica" vai progredindo e se modificando com o tempo. O que era "verdade médica" no ano ou no mês passado, hoje pode não ser mais. Quando eu era menino não havia vacina contra papeira (caxumba), varíola, coqueluche, catapora, sarampo, paralisia infantil. Nada de antibiótico. Depois é que descobriram a penicilina, marco histórico da ciência médica. Quantas vidas os antibióticos salvaram! Quantos cardíacos os betabloqueadores têm salvado! Bazite (inflamação na base do pulmão) "curava-se" com gemada (gema de ovo crua, batida com leite, açúcar e canela). Aliviavam-se os acessos de coqueluche, com passeios de avião e subindo para cidades de grande altitude. Não havia antitérmico eficaz. "Baixavam-se" as altas temperaturas (tipo 40 graus) com o pior dos suplícios: o tal do escalda pé. Que consistia no seguinte: o infeliz mergulhava os pés descalços numa bacia com água quente ("esperta") e suportava a tortura até quanto podia. Rios de lágrimas rolavam em rostos infantis, acompanhados de choros convulsos. O remédio pra gripe, além de dolorosas injeções intramusculares de cálcio, cânfora e Imunascorb, purgante de óleo de rícino. Imagine! O doente já estava fraco, desidratado, e tome laxativo. O pessoal da beira da maré, da velha Capunga, "tratava" amebíase e giardíase com creolina, e AVC com chá de cupim. Nas feridas e cortes recentes, "aplicavam" terra (terramicina?) e estrumo seco de gado. E ninguém tinha tétano. Assim caminha a "verdade médica", através dos séculos, curando uns e matando outros.



   Todo esse papo furado é pra dizer que existe mal maior que os supracitados. Tem um de lascar. O marido chega em casa cansado, depois de dois expedientes puxados, toma uma chuveirada, veste uma bermuda surrada, uma camisa velhinha, calça sandálias confortáveis, prepara-se para o jantar, ver o noticiário da televisão, ler o jornal, que ainda não leu, vem a mulher, dissimuladamente carinhosa, que nada fez durante o dia: "Benzinho, tá passando uma peça ótima no Santa Isabel. Vamos?" Na verdade, ela ainda não sabe se a peça presta ou não, ela quer é curtir os artistas globais das telenovelas. Se o casamento já tem mais de 20 anos, o marido reage firme e não vai. Se tiver entre 5 e 10, ele sucumbe, na vã tentativa de "salvar o matrimônio". E vai ter que enfrentar flanelinha cobrando dez reais pelo "estacionamento", fila para a compra do ingresso e 15 a 30 minutos esperando a abertura das cortinas. Após o espetáculo, lauto jantar, adentrando a madrugada. E nada pior que dormir de barriga cheia.



   * Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é do Instituto Histórico de Olinda







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RETROCESSO







Publicado no JC em 09/11/11 




   Sou rubro-negro, desde priscas eras, e confesso nunca ter visto time do Sport pior do que esse que anda por aí. Não 8tem padrão de jogo definido, não troca três passes seguidos e, de jogador de futebol, só tem Magrão, Marcelinho Paraíba e Bruno Mineiro.



   Interessante a dependência que sempre tivemos da Europa. Os movimentos renovadores nas artes plásticas em geral e na literatura sempre chegaram aqui com grande atraso, o que se justificava, em parte, pela morosidade e deficiência dos meios de comunicação. Hoje, com a tecnologia avançada nas redes sociais, correios eletrônicos e mídia, essas coisas não deveriam, em tese, continuar acontecendo, mas acontecem. Será mero problema cultural ou ainda o complexo de vira-lata Nelsonrodriguiano?



   É sabido que os europeus inventaram a retranca para enfrentar a habilidade dos sul-americanos, principalmente brasileiros, argentinos e uruguaios. Armavam sistemas defensivos (ferrolho, marcação por zona etc.) e contra-atacavam em alta velocidade, como podiam, tentando o gol. Fazendo gol, se fechavam mais ainda. Esses contra-ataques não tinham o brilhantismo das escapadas brasileiras. Quando Nelson Rodrigues (sempre ele) classificou a velocidade de Gento, famoso ponta-esquerda espanhol, integrante da lendária linha de frente do Real Madri (com o brasileiro Canário, o argentino Di Stéfano, os húngaros Kubala e Puskas) como “corrida burra”, estava definindo os padrões europeus. Nada que se comparasse às filigranas e centros certeiros de um Carlinhos Ramos Leal, um Nado, um Marito, um Mainha.



   O futebol europeu evoluiu e o brasileiro involuiu. Enquanto jogadores do meio-campo do Barcelona e Real Madri armam os lances para seus companheiros, como faziam Laxixa, Ivan Brondi, Otoney e Ranulfo, entre outros, os técnicos brasileiros escalam times com três a quatro cabeças de bagre, denominados “médios de contenção.” Trata-se de rapazes truculentos, sem virtuosismo, encarregados de “destruir o adversário” (o carregador de piano ou arranca-toco do meu tempo) e não de municiar os companheiros. Houve, portanto, tremendo retrocesso tático, no Brasil, porque, a partir de Zagallo, um dos coveiros do nosso futebol, os treinadores se especializaram em barrar todo menino que saiba controlar e lançar em profundidade. Estamos no reinado da mediocridade e da violência, onde imperam a deslealdade, os carrinhos criminosos e a mais infame e covarde das agressões: a tal da cotovelada no rosto,sob as vistas complacentes de árbitros pusilânimes e omissão da imprensa. Vão terminar matando Neymar aos coices e bofetadas, se ele continuar no Santos.



   PS.: Sábado, 12, às 18h., o escritor Luiz Carlos Albuquerque estará lançando As Aventuras de Urubill, pela Bagaço, na Tenda de Autógrafos da 2ª Feira do Livro de PE., na Praça do Carmo – Olinda.



   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Recifense de Letras.












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PRIMAVERA DE SANGUE







Publicado no JC em 02/11/11




   Em entrevista concedida no dia 1º de maio de 1978, a Geneton Moraes Neto, republicada no nº370 do Jornal da ABI, Nelson Rodrigues dá um verdadeiro show de blagues que no fundo encerram muita filosofia, sociologia, experiência e sapiência de vida.


   Comparando a imprensa de seus primeiros anos de jornalista, com a atual, sai-se com tiradas deliciosas. Começa lamentando a ausência de um ponto de exclamação nas manchetes de hoje. E manda uma lamentação de gênio: “A Noite era um jornal amado. O sujeito comprava A Noite disposto a ler ou não ler. Ler ou não ler era um detalhe insignificante.” O que Nelson quer dizer com essa frase aparentemente imbecil e redundante é que a pessoa saía de seu trabalho ao entardecer, após o segundo expediente, passava na padaria, comprava pão, leite e café para a ceia noturna e também A Noite, sem a qual a feira não estaria completa. A feira de sua casa, de seu lar, dele, da esposa e dos filhos. A Noite como se fosse um objeto indispensável para fechar, com chave de ouro, as necessidades básicas do cotidiano do homem do povo, da classe média.

   O antigo jornalismo, diz Nelson, permitia, por exemplo, que a cobertura de um incêndio que não deixasse vítima fatal terminasse com uma manchete sensacional: “Morreu cantando”. E conta o episódio de um incêndio que houve numa loja do Rio e ninguém morreu. Então, o repórter Castelar de Carvalho, encarregado de cobrir a tragédia inventou que um canário que morava na tal loja cantou até morrer no local. E a manchete “Morreu cantando” rendeu muito. Segundo Nelson, essa manchete redimiu “a mediocridade do sinistro” que irritara o repórter. Enquanto o pardieiro era lambido, o pássaro cantava, cantava. Só parou de cantar para morrer. “A história desse canário fez um sucesso tremendo. Um cara queria uma vala especial para o canário, o nosso querido cantor.” “Era lindo.” Agora, conforme o dramaturgo, a reportagem de polícia está mais árida do que uma paisagem lunar. “Lemos jornais dominados pelos idiotas da objetividade. A geração criadora de passarinhos parou em Castelar de Carvalho, o autor dessa reportagem sobre o incêndio.” E fulmina: “Daí porque a maioria foge para a televisão. A novela dá de comer à nossa fome de mentira.”

   Ainda nessa matéria, ele critica as manchetes da morte de Kennedy e suicídio de Getúlio Vargas: “Que pobre cadáver foi Kennedy: a manchete humilhava a catástrofe!” E lembra, com saudade, a manchete mais bonita que ele leu em todos os tempos. A saga de um estudante que foi assassinado pela polícia durante uma passeata. No outro dia a gazeta (ele não diz qual) estampou: “Primavera de sangue.” E exagera: “A manchete quase derruba o Presidente da República, o Ministro da Guerra, um negócio terrível. E tudo isso pela beleza que se atribui à manchete.”

   Pongando na entrevista e no talento do cronista pernambucano, acho que a manchete ideal para o bárbaro assassinato de Kadafi seria essa: “Primavera de sangue”, cujo duplo sentido englobaria a chamada primavera árabe dos revolucionários derrubando as ditaduras no Oriente Médio.

   P.S.: Excelente o livro de poesia Ora pro Nobis Scania Vabis, recentemente lançado por Vital Corrêa de Araújo, pela Bagaço.

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.




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MEDIDAS CAUTELARES







Publicado no JC em 26/10/11







   Amanhã, 27, às 18h30m, teremos o pré-lançamento de “Medidas Cautelares no Processo Penal – Prisões e suas Alternativas – Comentários à Lei nº12.403, de 04.05.2011”, na sede da Editora Revista dos Tribunais, na Rua do Riachuelo.



   Trata-se de livro importante, referindo-se ao primeiro diploma processual que traz alguma organicidade às medidas cautelares no processo penal, desde 1942. Ensaios de cinco dos mais competentes e reconhecidos processualistas brasileiros, Antônio Magalhães Gomes Filho, Geraldo Prado, Gustavo Henrique Badaró, Maria Thereza Rocha de Assis Moura e Og Marques Fernandes, a obra é coordenada por Og, Ministro do Superior Tribunal de Justiça.



   Segundo Og, o título representa oportuna análise das alterações trazidas com a promulgação da Lei 12.403/2011, que introduz, no ordenamento jurídico brasileiro, novo sistema ao regime de medidas cautelares penais, propondo exegese das questões mais relevantes acerca dessas medidas, nos domínios da área penal, e sua aplicação ante as peculiaridades da novel legislação. “O trabalho adota linha mista de abordagem, tratando o tema de forma pragmática, ao passo em que não se afasta das respectivas premissas científicas”, completa Og.



   No prefácio, Ada Pellegrini diz que o livro é estudo sólido e profundo das medidas cautelares em geral e das peculiaridades da nova lei em particular - a presunção de inocência, a proporcionalidade, a jurisdicionalidade e as garantias do devido processo legal.



   P.S.: Ainda amanhã, às 20h30m, lançamento do romance “Amores Flutuantes” de Luciano Marinho, pela Scortecci-SP, na Academia Pernambucana de Letras. De temática novelesca, é a história de duas mulheres que se amam, desde crianças.

   Hoje, 26, lançamento de “Pano Rápido”, de Joca Souza Leão, o malabarista da crônica, CEPE Editora, às 18h30m, no Museu do Estado de Pernambuco. Todo mundo lá!



   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Pernambucana de Letras Jurídicas.



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SOLIDÃO




Publicado no JC em 19/10/11





   Alheio à crise financeira e econômica que assola a Europa e os Estados Unidos, e às reações populares às ditaduras dos países árabes, acordo disposto e pego a gaiola do papa-capim, que canta alegre no prego da varanda. É uma gaiola nova em folha que comprei na feira-livre de Gravatá. Ponderei muito antes de comprar essa gaiola, aguardando que o papa-capim aprimorasse a melodia para merecê-la. Penso que decorreram seis a sete meses para isso acontecer. Antes, consultei Nicácio, especialista em canto de pássaro silvestre, para ouvir sua opinião. Ele pediu tempo para responder, queria escutar melhor o passarinho, emitir diagnóstico correto. Sabia que eu tinha “adquirido” o papa-capim do amigo dele, Zeca de Nana, vaqueiro de uma fazenda à margem da antiga estrada de barro e pedregulhos que ligava Gravatá a Limoeiro, e não queria magoá-lo com palpite equivocado e irresponsável.

   Desconfiei do vacilo e, compreendendo seu embaraço, resolvi poupá-lo da delicada tarefa. Quem mora só, como eu, num sítio pequeno e isolado do mundo, no meio do mato, precisa conviver em paz com os vizinhos. E Nicácio é vizinho bom e prestativo. Com ele aprendo sobre os pequenos peixes, bichos e aves que habitam árvores, capinzais, capoeiras, açudes e riachos, ao redor de minha casa. É ele também que cuida dos cachorros, tira leite de Espoleta, troca a água e serve alpiste e jiló ao meu azulão. Nicácio é o que se pode chamar de senhor idoso, beirando seus 80, e digo beirando porque ele nunca me disse sua idade. Faço esse cálculo baseado na pele encarquilhada do seu rosto curtido pelo sol, os cabelos brancos, a dura experiência na roça.

   Estou neste sítio há 12 anos e até hoje não sei nem procurei saber como Nicácio se sustenta. Apesar de discreto, ele me perguntou outro dia, cabisbaixo e meio escabreado, olhando meu fogão a lenha, por que eu, “um homem branco e rico”, não tenho luz elétrica, televisão e celular, como os barões “lá de cima”. Esse “lá de cima” de Nicácio é porque moro ao pé da serra, num lugar silencioso e ermo, onde não passa ninguém, não vive ninguém.

   Conto a história banal desse papa-capim, pois ontem apareceu um cidadão aqui, na cancela, com ares de lorde, montado num manga-larga alazão, falando ter vindo de longe, pros lados de Bezerros, se não me engano, querendo comprá-lo. E eu não o vendo. Prefiro soltar o bichinho. Minha solidão vai aumentar, sentirei sua falta, mas não o negocio por dinheiro nenhum. Não adianta insistir nem botar preço.



   * Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes, Letras e Ciências de Olinda.



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CUBANDO O MULHERIO




Publicado no JC em 12/10/11



   Telefonema de Zé Paulinho: “Duda Guennes está na terra e quer rever os velhos companheiros. Vou oferecer um jantar a ele, traga Fernando Mendonça.” Peguei Fernandinho Mendonça em seu apartamento, e partimos para a casa de Zé Paulinho, em Piedade. Memória extraordinária, Fernandinho é um dos homens mais inteligentes, cultos e dignos de Pernambuco.



   O primeiro que encontro no jantar é Fernando Menezes, amigo irmão de Duda. E Joca Souza Leão, o Garrincha da crônica recifense. Não citarei outros, para evitar injustiça, porque tinha muita gente, o que prova o grande círculo de amizade que Duda deixou, no Recife, quando foi morar em Portugal, onde exerceu a resenha esportiva, com brilhantismo, até o fim.



   Conversa com Duda Guennes passa por dois assuntos inevitáveis: política e futebol. Deixamos o primeiro de lado e enveredamos pelo segundo. Logo no começo, ele me tirou uma dúvida: os portugueses admiram Pelé, mas preferem Eusébio, o que é bairrismo (ou patriotismo?) natural. Mas – confesso a Duda – o que não perdoo nos lusitanos, como diz Armênio Dias, é o massacre de Pelé na Copa de 66, com a criminosa conivência do árbitro. Aquilo comprovou que havia orquestração para a Taça ficar na Europa. Ofereço vinho a Duda, ele recusa e agradece: “Já completei toda a cota de álcool de minha vida”. Foi no suco de pitanga.



   Depois de uma bacalhoada divina, chefiada por Maria Letícia, Zé Paulinho me chama: “Venha ver onde estou escrevendo meu livro sobre Fernando Pessoa.” Era uma cadeira frontal à cozinha.



   - Quando termina?



   - Não sei. Vou com novecentas páginas, mas já cortei duzentas e ainda terei que voltar a Portugal umas três ou quatro vezes para colher dados concretos, dirimir dúvidas, esclarecer pontos ainda obscuros, polêmicos e controversos da obra e personalidade do poeta.



   - E a tiragem?



   Ajeitou os suspensórios, deu uma baforada no charuto, poluindo o ambiente:

   - A editora calcula três mil.



   Hoje, 12 de outubro de 2011, já se vão trinta mil. Sucesso estrondoso de venda.



   Faz tempo, noite quente e clara de verão, céu azul e lua cheia, entro na Churrascaria Mocambo, no Parque 13 de Maio (famoso reduto de boêmios, primeiro restaurante tipo palhoça, da praça, a servir churrasco de filé grelhado e lagosta), com José Maria Lubambo - quem encontramos? Capiba, ao piano, tocando Maria Bethânia, cercado de admiradores, inclusive Duda Guennes, que conheci nessa ocasião. Ele ainda morava aqui, não tinha se transferido para Lisboa, onde passou a assinar a coluna “Meu Brasil Brasileiro” no jornal “A Bola” a partir de 1980, com algumas transcrições para o JC.



   Notívago, irreverente e romântico, ninguém sabia histórias de figuras folclóricas do Recife mais do que ele. E nem as contava com tanta verve, humor e riqueza de detalhes. Certa vez, estava batendo papo na porta da igreja do Cordeiro, numa missa de domingo, o pároco deu-lhe um esporro: “Por que o senhor fica aí, perturbando o culto e não entra pra rezar?” E Duda, sussurrando cinicamente: “Agora não posso, padre, estou cubando o mulherio!”



   Nessa noite da Mocambo, ele tomava cerveja e fumava. Lembro que pedi a Capiba para tocar duas músicas suas: Olinda e Igarassu, e fui gentilmente atendido. E que vieram sentar na nossa mesa, Renato Carneiro Campos, Guilhermão e Mano Teodósio. Eu estava apaixonado por uma gaúcha que voltara para Porto Alegre na véspera, deixando meu coração despedaçado, e me emocionei quando Expedito Baracho interpretou Cais do Porto, ao violão. Mas isso são outros quinhentos, a dor é minha e de mais ninguém...

   Saudades de Eduardo Guennes Tavares de Lima, doce e excelente figura humana, craque da pelota escrita.



   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.





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O CORREDOR DA MORTE







Publicado no JC em 05/10/11



   A execução recente de Troy Davis em Huntsville, na Geórgia, com injeção letal, gerou novo debate mundial sobre a pena de morte. Ele foi condenado em 1991 por suposto assassinato do policial branco Mark MacPhil, em Savannah, e passou 20 anos na prisão aguardando o desenlace. As notícias são de que não houve perícia, não se encontrou o instrumento do crime e sete testemunhas declararam-se coagidas a depor contra o réu, negando tudo depois. Levando-se em consideração que o sentenciado era afro-americano e a vítima branco, temos muitos precedentes na terra de Tio Sam.

   Em 1962, surge o filme O sol é para todos, direção de Robert Mulligan, com Gregory Peck e Mary Badham. Ambientado nos estados sulinos norte-americanos da década de 30, quando a intolerância racial ainda era a conduta, a fita é a adaptação do romance homônimo de Harper Lee. O negro Tom Robinson, acusado de estupro é considerado culpado – falsa acusação com nuanças racistas. Filme que reflete a corrupção moral de um período da história que, como vemos no caso de Troy Davis, repercute ainda hoje.

   Adivinhe quem vem para jantar (1967), direção de Stanley Kramer, com atuações estupendas de Spencer Tracy, Sidney Poitier e Katharine Hepburn, é o melhor filme sobre o assunto. Penso que foi o grande momento da carreira de Poitier, no papel de proeminente médico “de cor”. Isso, na década de 60. O problema é a cor da sua pele. Joanna Drayton foi educada em uma família liberal, mas seu casamento com um negro vai testar seus pais (Hepburn e Tracy) ao máximo. Na teoria, é fácil ser liberal progressivo. Quando o problema entra pela porta da frente de sua casa, será possível sustentar essa posição?

   Contam que um jornalista inglês perguntou a Gilberto Freyre, papa do lusotropicalismo, se ele permitiria que um filho seu casasse com uma “pessoa parda”, e ele respondeu que não. Uma coisa é um tema acadêmico e outra é a realidade dos fatos. Cada um sabe, segundo seus preconceitos, idiossincrasias e antipatias, onde o calo aperta. Na Bahia, tida como a terra do branco mulato e do preto doutor, quando uma branca quer insultar, xinga a negra de “nigrinha”; e quando a preta quer dar o troco, diz que “aquilo é coisa de branca”. Tem mais: se quer “tirar a dúvida da brancura” do cidadão a ser atingido, diz-se: “aquele é um mulato do beiço roxo”. Ou de “sinal nas costas”.

   Teorias jurídicas e sociológicas, de lado, o que mais me impressiona em casos como esse de Troy Anthony Davis, de 42 anos, é o que se passa no cérebro de um inocente condenado por um crime que não cometeu, nos dias, horas e momentos finais da vida, principalmente quando ele caminha para o cadafalso. Devia haver um estudo profundo sobre isso, aplicando o que há de mais moderno nas técnicas da psiquiatria. Quem sabe, um eletroencefalograma registrando as reações cerebrais do condenado dias antes de sua execução, serviria para a suprema corte de qualquer país decretar seu veredicto final?

   P.S.: Quem quiser se aprofundar em pena de morte, alugue o clássico Somos todos assassinos (drama de André Cayatte – Fança/Itália, 1952), que assisti no Parque, com meus colegas do Colégio Nóbrega, Olympio Costa Júnior, Marcelino da Fonte, Luizinho da Costa Lima, Ricardo de Paula Lopes, Fernando Gondim, Artur Coutinho e Vanildo Maroja, entre outros, pois íamos fazer vestibular de direito.

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Pernambucana de Letras Jurídicas.


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FACULDADES DE DIREITO




Publicado no JC em 28/09/11





   Quando Rubem Braga esteve no Recife, exercendo o jornalismo, pelos anos 50, ficou hospedado numa pensão, juntamente com Saulo Suassuna, Capiba e Noel Nutels. Certa noite, os três já deitados em seus respectivos beliches, esperando o sono chegar, eis que surge no quarto uma barata voadora. Aquele pandemônio, cada um querendo matar o inseto, Rubem pega o canudo que acondicionava seu diploma de bacharel, pela Faculdade de Direito de Niterói, esmigalha a bicha e desabafa, triunfante: “Até que afinal esse negócio prestou pra alguma coisa!”, sob os aplausos galhofeiros dos três colegas.

   Deve estar fazendo uns 60 anos, o compositor pernambucano Antônio Maria (ou foi o cronista Sérgio Porto?) pronunciou uma frase que se tornou célebre: “Difícil, no Brasil, é não se formar em Direito.”

   É público e notório que durante muito tempo, a partir do século XIX, as duas “formaturas” mais importantes do brasileiro eram o bacharelado em Direito e o sacerdócio católico. Lendo o velho Machado de Assis, constata-se isso. Muitos rapazes formavam-se em Direito, sem a menor vocação, para “ser doutor”, de anel no dedo, satisfazendo a vontade dos pais. (O fenômeno é antigo. Já em 1906, Franz Kafka se formava em Direito para glória de seu pai Herman.) Embora não seguissem a carreira, principalmente na época em que não havia faculdade de comunicação, e esses bacharéis escreviam nos nossos jornais, de Norte a Sul. Alguns deles se tornaram famosos, como Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Otto Lara Rezende, Carlinhos Oliveira, Carlos Lacerda.

   Quando fiz vestibular, só havia uma Faculdade de Direito em Pernambuco: a Federal. Depois, com honrosas exceções, a praga foi se alastrando e contaminando todo o Estado, diplomando uma enxurrada de analfabetos, que, em sua maioria, terminam reprovados no exame da OAB e subscrevem petições iniciais com erros crassos, em especial de concordância, agredindo a última flor do Lácio, inculta e bela, ouro nativo que na ganga impura entre os cascalhos vela. Ufa! Segundo Jefferson Karavchychyn, conselheiro do CNJ, existem 1.240 faculdades de Direito no Brasil, “contra” 1.100 do resto do mundo. Nunca em tempo algum, neste País, houve tanta faculdade de Direito...

   Antigamente, a rapaziada cursava Direito para advogar, exercer a profissão. Tinha orgulho de abrir “banca”, recém-formado, e militar no ramo de sua preferência, fosse ele cível, penal, trabalhista ou tributário. Hoje, a primeira pergunta que o estudante faz é qual a especialidade do Direito que “dá mais dinheiro”. Ou que garante estabilidade econômica. A maioria dos formados renega a advocacia, prestando concurso para a magistratura, o ministério público, delegado de polícia, analista, etc.

   Outrora (gostou, Fernando Monteiro?) clientes e advogados de empresas do Sul, quando nos traziam causas relevantes e pediam que contratássemos juristas para “ajudar” nos processos, recomendávamos os professores Ruy Antunes, os irmãos Antônio e Roque de Britto Alves, no âmbito penal, e José Paulo Cavalcanti (que adorava maçã, não usava suspensório e não fumava charuto), Fernando Elysio Wanderley e Octávio Lobo, no cível. Agora, os executivos de outros Estados desembarcam no Aeroporto Guararapes perguntando qual o escritório desta comarca que faz lobby. Como não sei, sugiro ao leitor que por acaso souber, que o indique, remetendo a correspondência para a sessão de Cartas à Redação ou o caderno de Classificados deste vibrante matutino. Ia ser uma zorra!

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Pernambucana de Letras Jurídicas.



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O CREPÚSCULO DOS DEUSES




Publicado no JC em 21/09/11





   O pessoal da velha guarda não esquece o filme americano que leva esse título (1950), direção de Billy Wilder, com William Holden e Glória Swanson. O encontro da desvanecida estrela Norma Desmond (Swanson ) e o ambicioso roteirista Joe Gillis (Holden). Vivendo um verdadeiro isolamento em uma mansão, Norma passa seus dias nostálgicos imaginando como poderia tornar-se, mais uma vez, uma lenda. Joe se depara por acaso com a mansão decrepta e com a antes famosa sorumbática Norma, e fiquemos por aqui, porque não tratarei da fita. O tema é que faz parte de nossa vida.

   Quando cheguei ao Recife, ouvia falar dos homens mais ricos do Estado. Era uma lista de cinco a dez, que faziam parte do imaginário popular nas conversas de mesas de bar, restaurantes, festas de casamento, de porta de igreja em missa fúnebre. Anos depois, alguns daqueles ricaços perderam a fortuna ou quase toda e novos ricos surgiram. “A fila anda”, filosofa amiga minha recém divorciada, e com namorado. Não citarei nomes para evitar constrangimento. A maioria deles conheci em encontros fortuitos. Homens sobem e descem de status financeiro, econômico, profissional e social, porque a vida não é como a gente quer que ela seja; a vida é como ela é, e priu.

   Esse papo furado vem a propósito de Sócrates e de Todo Duro. Dizia-se que os jogadores de futebol tornavam-se alcoólatras por falta de educação, instrução e decepções amorosas. Nem sempre. Sócrates não se enquadra nessas hipóteses, e não estamos aqui para pregarmos moral nem bons costumes, cada um siga seu caminho. Lamentamos, em seu caso, é que, na flor da idade e tendo ainda, muito a produzir, esteja com saúde precária.

   Alcoolismo à parte, leio notícias ruins sobre nosso folclórico boxer Todo Duro. Diz ele que os empresários lhe afanaram cerca de 2,5 milhões e agora sobrevive com pequenos biscates. Por ironia, seu grande rival, o baiano Holyfield, sofreu grave acidente e segue hospitalizado com 40% do corpo queimado. Uma luta com Holyfield poderia ainda lhe render alguns trocados, mas essa possibilidade acabou. Sonha em enfrentar Anderson Silva, a quem promete “estraçaiá”. Coitado! Bom que fique no sonho, caso contrário, seria massacre. O crepúsculo chega para todos nós, famosos ou não, pobres mortais. Uns reagem com resignação, outros caem em profunda depressão. O crepúsculo dos deuses não é mole, mas nosso problema maior é a solidão metafísica. É aí onde a porca torce o rabo.

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.



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VELHOS PAPÉIS




Publicado no JC em 14/09/11



   Prazer de folhear gazetas e papéis velhos, no silêncio da noite. Prazer de constatar, através de antiga correspondência, que havia entre meus antepassados um sagrado dever de solidariedade humana. Uma preocupação constante com problemas e sofrimentos de cada familiar. Nesta carta de agosto de 1937, meu tio pede ao compadre distante sua interferência junto às testemunhas que vão depor numa ação do cunhado. Este recorte de jornal, desbotado pelo tempo, transcreve substanciosa crítica da obra de meu avô paterno, Aloysio de Carvalho, poeta e jornalista baiano.

   Dentro da caixa de papelão, cuidadosamente envolto em plástico e elásticos, singelo diário de meu avô materno, pernambucano da pesada. Minucioso na discrição e nos mínimos detalhes das viagens, conta que embarcou a 2 de agosto de 1933, de Salvador para Recife, “no Almirante Alexandrino, seguindo daqui para o Maranhão, às 5,43 (incrível o detalhe dos 43 minutos!) do dia 8, pelo Itaimbé”. Que teria ido fazer naqueles confins, em remotas épocas? “Fui tratar das lojas dos Lundgrens”.

   No dia 4 de dezembro de 1941, ele embarcava pro Rio de Janeiro, “no vapor Itapagé, que saiu às 24 horas”. E “a viagem não foi nada boa, não só pela comida, como, ainda mais, pelo péssimo camaroteiro”. No fim da página, uma grata recordação: “Conosco foi também a empregada Justina”.

   Já meninote, eu fugia de casa para assistir Justina dançando à frente dos atabaques, comandando as filhas-de-santo, penetrando mar adentro, com presentes para Janaína. Terminado o ritual, esperava que todos regressassem para a Igreja de Santana, as barracas de aguardente, as rodas de samba. E disputava com a molecada cortes de fazenda, caixas de sabonete e pó-de-arroz, pentes, metros de fita, anéis e vidros de perfume, restos de oferendas que as ondas devolviam e se espalhavam pela areia.

   Não sei se o velho Arthur Eduardo era muito exigente ou dava azar com os camaroteiros. A verdade é que nessas anotações do dia 18 de dezembro de 1948 diz: “Partimos ontem, pra Recife, no D. Pedro II. Viagem boa, apesar do péssimo camaroteiro chamado Leão”.

   Leão?

  Em 1954 eu estava no Gambrinus, com um colega gaúcho, do Banco Francês e Italiano para América do Sul. De repente, vejo, na mesa ao lado, um cara conhecido. Procurei identificá-lo de pronto, não consegui. Quando ele se levantou para colocar uma ficha na eletrola, notei uma tatuagem azul no seu pescoço. Imediatamente reconheci Leão. Sem me identificar, convidei-o para bater papo. Conversamos até de madrugada, ele me pareceu cordial e agradável. Queixou-se apenas de cíclicas neuroses. E não era pra menos. Ele fora náufrago da Bahia, aos 20 anos.

   Lendo agora, em pleno 2011, as queixas de meu avô, vejo que elas têm fundamento, mas perdôo o meu caro Leão, pelo seu difícil relacionamento com os passageiros do Pedro II. Afinal, quem esteve na iminência de se afogar na imensidão do oceano, já pagou toda a sua quota de penitência neste mundo de Deus. Morrer no mar pode ser doce nos doces versos de Caymmi. Mas duvido que haja experiência tão amarga neste vale de lágrimas.

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.



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 500 TRANSPLANTES DE FÍGADO



Publicado no JC em 07/09/11


   Não vamos falar em corrução para não perder tempo. Quando o porre é grande, a vítima fica anestesiada. Isso acaba de acontecer com a absolvição de Jaqueline Roriz. A lição que nos fica é: antes de exercer qualquer cargo eletivo, o cidadão brasileiro pode roubar à vontade, sem ser condenado.


   Falar nisso, o que mais me impressiona é o biótipo dos parlamentares, e principalmente prefeitos do interior acusados de corrução. A maioria das cidades interioranas do Nordeste vegeta em condições de insalubridade, de péssima educação e de saúde precária. Todos os dias a imprensa exibe esses desmandos. Mas quando publicam a imagem desses prefeitos acusados de falcatruas, o rosto deles, principalmente o rosto, é o de um cidadão de bem com a vida, tranquilo, face rosada lisa, escanhoada, cabeleira viçosa, camisa de grife, risonho, exibindo cinismo revoltante. O rosto do homem rico, que anda fuçando como porco a miséria que o cerca, roubando a merenda das crianças, embolsando verba das estradas, afanando o dinheiro da saúde pública. Quem se dá ao trabalho de me ler desde que colaboro com a imprensa pernambucana - e faz muito tempo - sabe que sempre fui contrário à pena de morte, mas hoje revejo meu pensamento. Acho que toda essa canalha deve ser executada na cadeira elétrica ou, como fazem na China, fuzilada em praça pública. Crime hediondo é isso, é tungar a verba das crianças e dos velhos. Em recente entrevista à Veja, a ministra Ellen Gracie declarou que a legislação penal brasileira é feita para proteger os grandes ladrões e que ladrão rico com bom advogado nunca irá para cadeia neste “país tropical, abençoado por Deus”.

   Por isso, dá gosto ver, feito ilha em mar de lama, o trabalho extraordinário que está sendo realizado pelo Hospital Universitário Oswaldo Cruz, em vários setores da medicina, sendo inclusive referência em transplante de fígado no Brasil, com Pernambuco comemorando 500 desses transplantes em parceria com o Hospital Jayme da Fonte, com transplantados provenientes de todo o Norte e Nordeste e alguns do sudeste, numa inversão histórica de fluxo de pacientes, que enviava seus doentes para o polo paulistano, e, hoje, já atende esse pessoal vindo do Sul.


    De acordo com o chefe do programa, Cláudio Lacerda, o aumento das cirurgias só foi possível graças à melhora do esquema montado para captar órgãos em vários Estados do país. Segundo o Diretor Railton Bezerra, do Oswaldo Cruz, e o Cel. Tarcísio Calado, seu assessor, o transplante de fígado é o procedimento cirúrgico mais complexo da medicina, por exigir tecnologia e recursos humanos aprimorados e uma equipe médica multidisciplinar. Para celebrar os doze anos do programa e a marca dos 500 transplantes de fígado, o Oswaldo Cruz (HUOC) e o Jayme da Fonte, este dirigido por esta figura humana finíssima chamada Antônio Jayme da Fonte, realizaram sessão solene no Auditório da Faculdade de Ciências Médicas da UPE, com a presença do cirurgião Silvano Raia, pioneiro do transplante de fígado no Brasil, com aposição da placa dos 500 transplantes, no pavilhão Amaury de Medeiros do HUOC.


   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Pernambucana de Letras Jurídicas.




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AS MARIPOSAS DO AMOR




Publicado no JC em 31/08/11

   Convidado para participar de debate em Geraldo Freire, recentemente, enfrentei o tema “A crise das prostitutas”, com a presidente da APPS - Associação Pernambucana das Profissionais do Sexo, Nanci Feijó, o empresário da noite Toinho Danelore e o pesquisador popular Liêdo Maranhão.

   Muitas foram as razões apresentadas pela mesa para explicar ou justificar essas causas. Na minha vez, expus algumas delas, que peço vênia ao leitor para repetir.

   Comecemos com o Mangue do Rio de Janeiro. Pelos anos 40, o Mangue foi a zona de prostituição mais famosa do Brasil. Manuel Bandeira, um de seus ilustres frequentadores, apesar de poeta sofisticado e culto, ou por isso mesmo, dizia que “o Mangue é uma festa de todas as noites”. E acrescentava que no Mangue ouvia-se a mais genuína música popular brasileira, com os seus improvisados conjuntos de chorinho e samba.

   Luiz Gonzaga começou sua “vida artística” lá, tocando polcas e valsas no seu fole. Terminado o número, corria o pires entre os ouvintes para colher moedas e sobreviver. De repente, estava entre seus admiradores o jovem estudante cearense Armando Falcão, que viria a ser ministro da Justiça de governos militares. Falcão recomendou a Lua: “Pare de interpretar ritmos estrangeiros. Sanfona é instrumento de música nordestina.” O Rei seguiu seu conselho e compôs o xamego Vira-e-mexe, em parceria com Miguel Lima.

    O Mangue não entrou propriamente em decadência - ele foi destruído por ordem do ditador Getúlio Vargas. E a tristeza, o drama e a miséria envolveram o Mangue com o manto da desgraça e da ignomínia, com suicídios dramáticos de muitas de suas mulheres, ensopando o corpo com álcool ou gasolina e tocando fogo e correndo desesperadas como tochas humanas, se jogando no canal.

   Dizem os entendidos e estudiosos no problema que o principal motivo do declínio da Lapa foi a introdução, pelos marinheiros americanos, da radiola de ficha em seus bares e cabarés, “desempregando” os músicos profissionais que por lá tocavam. Penso que esse fenômeno atingiu todas as zonas boêmias do Brasil.

   A clientela numerosa e pesada das mulheres do Recife Antigo, incluindo Pina e Boa Viagem, era dos marujos e embarcadiços da Marinha Mercante Brasileira, de belonaves, transatlânticos, navios estrangeiros e barcos pesqueiros, japoneses, coreanos e estudantes. Esses navios foram escasseando, e os comerciários e bancários que trabalhavam no bairro do Recife contando com a liberação dos costumes de suas namoradas, passando a transar com elas em qualquer lugar e nas próprias casas de família. Um baque para as mariposas do amor.

   Desapareceram o charme e o encanto das noites estreladas, enluaradas e dançantes do Chanteclair, Molin Rouge, Flutuante e Black Tie, do Belvedére, Rumba Dancing e Tabaris, na Bahia. Conforme Nanci Feijó, essas “meninas” foram substituídas pelo que hoje se chama “garotas de programa”, que, segundo Nanci, autoridade no assunto, “não querem assumir sua condição de prostituta, o que realmente são”.

   O delegado aposentado Pedro Luiz de Magalhães Malheiros diz que quem bebe não deixa de beber: “Pode mudar de setor, mas não deixa de beber.” Parodiano Mestre Pedro, acho que a profissão mais antiga do mundo não acabou - mudou de setor. Transferiu-se, aos poucos, com a evolução natural da sociedade, do domicílio fixo de lupanares estabelecidos em quartinhos e cortiços da Rua da Guia, Bom Jesus e Pelourinho, para as boates, inferninhos e motéis de luxo dos bairros grã-finos das cidades, BRs e perimetrais.

   * Arthur Carvalho, advogado de jornalista, é da Academia Pernambucana de Letras Jurídicas





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MAURO MOTA







Publicado no JC em 24/08/11

   Conheci Mauro Mota em janeiro de 1962, quando fui trabalhar no Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, hoje Fundação Joaquim Nabuco. Mauro era seu diretor-executivo e, apesar de meu humilde cargo oficial no instituto ser o de escriturário nível 8-A, pertencente aos Quadros do Ministério de Educação e Cultura, ele me encarregou de exercer atividades de nível médio-superior (edição do boletim mensal do IJN, coordenação de cursos, palestras e encontros culturais), querendo incentivar talvez minhas veleidades de jovem intelectual da província. Naquela época eu cometia meus contos nos suplementos literários do Diário de Pernambuco (apadrinhado por ele) e no Jornal do Commercio (por Tomaás Seixas e Esmaragdo Marroquim). Tanto que ele só me apresentava aos amigos e beletristas, creio que na brincadeira, como era seu estilo, como "o conteur". Nessa de "o conteur", fomos a Aracaju para fazermos palestra, ele, sobre "poesia moderna", e eu, sobre "conto moderno"... Tudo invenção dele, que tinha medo de avião e queria companhia para viagem. E, na volta, os trens de aterrissagem do velho Douglas D-C-6 não funcionaram, e Recife ia perdendo, prematuramente, um de seus melhores poetas, porque o "conteur" ficou na promessa de "conteur".

   Naquele tempo de sede na 17 de Agosto, 2187, em Casa Forte, na bela mansão azulejada que, segundo a lenda, pertenceria a Chico Macaco, com seus jardins floridos e salpicados de mangueiras, jaqueiras, coqueiros e sapotizeiros, Mauro Mota dispunha de excelente equipe de apoio, para tocar os projetos do Instituto: Roberto Motta, Roberto Cavalcanti de Albuquerque, Walter Costa Porto, Adão Pinheiro, Renato Carneiro Campos, Alcides Nicéias, Adauto Gonçalves, Fernanda Ivo, entre outros. Turma boa, competente, de agradável convivência. Melhor ainda, quando Gilberto Freyre, presidente do Conselho Deliberativo, aparecia ao cair da tarde com seus blazers coloridos, chapéu de caçador de safári africano, calças de flanela, sapatos de camurça marrons, ilustrando a rapaziada com simpatia e erudição. Com o tempo, passei a desfrutar da amizade de Mauro Mota que, de vez em quando, me convidava para um uísque ou almoço em sua casa de Olinda. Elegante, vaidoso, afável, hipocondríaco, tiques nervosos de pescoço puxando o colarinho, espirituoso e irônico, dominando, como poucos, a arte da boa poesia e da prosa, com ele aprendi, entre um segredo e outro da literatura, a usar chapéu de palhinha Panamá e bengala em minhas caminhadas matinais na Beira-Mar da Marinha dos Caetés.

   No nosso jantar de despedida, no restaurante D. Pedro, Roberto Motta ao seu lado esquerdo e eu à sua direita, Mauro me olhou fixamente nos olhos, com seu peculiar olhar penetrante: "Trouxe uma lembrancinha para você." Abri o envelope branco, era um manuscrito a tinta azul do poema O guarda-chuva, que eu gostava muito, com dedicatória, ilustrado por Adão Pinheiro. E queixou-se, amargurado: "Passei a vida inteira evitando o infarto e terminou esse bicho pegando meu pulmão." Calado estava, mudo fiquei, sem saber o que dizer. O jeito foi pedir outra garrafa de vinho.

   Seu velório, que poderia ter sido na Academia Brasileira ou Pernambucana de Letras, foi no salão nobre da Fundação Joaquim Nabuco, que ele amava e dirigiu por vários anos. Na entrada, encontrei Júlio Crucho. "Tudo bem, Crucho?" E Crucho, nostalgia lusitana à flor da pele, de séculos e séculos de Trás-dos-Montes: "Tudo bem, doutor. Ele está com a face serena e tranquila. Dorme em paz".

   P.S. : Na praça, O desenvolvimento social do Brasil, José Olympío Editora, balanço dos anos 1900-2010 e agenda para o futuro, do economista e ensaísta Roberto Cavalcanti de Albuquerque. Imperdível.

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco







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O ARATIMBÓ







Publicado no JC em 17/08/11




   Não sei por que cargas d"água, sonhei que estava deitado numa espreguiçadeira, no convés do Aratimbó. Na verdade, sempre gostei da sonoridade desse nome "Aratimbó", que fazia parte da flotilha de Aras, da Companhia Nacional de Navegação Costeira. Os outros eram o Araranguá, o Arará, o Araraquara, o Arabutã e o Araçatuba.

   Diziam que o Aratimbó era o mais veloz dos Aras e que ganhava na corrida para todos os Itas, perdendo apenas para o dom Pedro II, do Lloyd Brasileiro, no qual atraquei no Porto do Recife numa ensolarada manhã de verão, em priscas eras.

   Desconheço o motivo de o dia estar tão agitado, a bordo do Aratimbó, e com tantas pessoas percorrendo seus camarotes, passeando pelo tombadilho, pela proa e popa. O Aratimbó tinha 115,21 metros de comprimento e deslocava 4.870 toneladas brutas. Fabricado na Itália, fazia a cabotagem da Costa Brasileira de Norte a Sul, pelas décadas de 40 a 60.

   Uma tarde, apresentei seu imediato Francisco José da Silva, baiano falante e simpático, a Waldemar Machado, filho do velho português Seu Machado, dono do armazém Avenida, estabelecido na Marquês do Recife, quase vizinho ao Chantecler. Francisco fez as compras para abastecer o navio e foi conhecer a zona boêmia do Pina, com Waldemar, onde se apaixonou por Rosineide, olhos verdes, cabelos oxigenados e vestido colante rabo de peixe (famosa por não se preocupar com o tamanho do pinto do freguês), com quem tinha dançado a noite inteira no Maxime. No dia seguinte, embarcou no Aratimbó, de volta à Bahia, mas Rosineide não lhe saía da cabeça. Francisco era casado com uma paraibana com quem morava em Amaralina.

   Duas semanas depois, o Aratimbó desceu pro Rio de Janeiro, levando muitos tripulantes e Rosineide, que, morta de saudade de Francisco, havia pegado um trem em Pernambuco e desembarcado de pau de arara em Salvador, logo comprando bilhete para viajar no Aratimbó.

   Rosineide não sabia nem podia adivinhar que naquele mesmo paquete estaria Ângela Maria, esposa de Francisco. De férias na Cidade Maravilhosa, Ângela passaria uma quinzena hospedada com o marido e os três filhos em hotel no Botafogo. A essas alturas, o leitor poderá pensar que, ao se encontrarem, todos no navio, Rosineide, Francisco, Ângela Maria e os filhos de Francisco com Ângela, armara-se o barraco e o pau quebrou, mas nada disso - ao contrário. Com calma e frieza de marinheiro, Francisco apresentou Rosineide a sua mulher, narrando a história verdadeira da noite em que dançaram no Maxime e as duas se tornaram amigas. Vou repetir: ambas ficaram amigas para sempre. E quando Rosineide estava carente, pedia a Ângela Maria: "Você me empresta seu maridinho um pouquinho, meu bem?". E Ângela, solícita: "Fique à vontade, minha filha". E os dois pombinhos saíam de braços dados, sem hora certa para voltar.

   Contei isso ao Prático da Barra, Luís Augusto, na presença dos Comandantes Joèse Leandro e Jorge Lara, que se limitaram a rir.

*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Olindense de Letras.
















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LUA DE MEL





Publicado no JC em 10/08/11




   Notícias da imprensa dão conta de que o Consulado do Brasil em Buenos Aires recomenda "enfaticamente" em seu site que os brasileiros evitem viajar para a Argentina, principalmente Bariloche e Ushuaia, enquanto as cinzas do Puyehue estiverem afetando o espaço aéreo. E acrescenta que a LAN só deve voltar a operar no dia 15. O Brasil é país abençoado por Deus. Se, por um lado, é o paraíso dos ladrões impunes, por outro não tem vulcão, terremoto e tsunami. Não é porreta?

   O brasileiro que acha chique passar a lua de mel em Buenos Aires conhece bem a terra onde nasceu? Já fez alguma viagem de navio subindo ou descendo o Rio Amazonas, o maior do mundo, com escalas em Manaus, Parintins, Óbidos, Santarém e Belém do Pará? Mergulhou nas águas mornas de Muriu, Ponta Negra e Pirangi, no Rio Grande do Norte? Visitou Olinda, Ouro Preto, Sabará, São João del Rei, Parati, a região fluminense dos antigos casarões dos barões do café? Salvador e suas igrejas, conventos e terreiros de candomblé? Comeu efó, xinxim de galinha e frigideira de aratu nesses terreiros? Assistiu a uma pesca de xaréu na Praia de Armação? Nadou na Boca do Rio, no Recôncavo baiano? Dançou no Bola Preta, na Estudantina e numa prévia carnavalesca do Cacique de Ramos? Tomou chope na Lapa, ouvindo Tereza Cristina cantar? Passeou no bondinho do Pão de Açúcar e no trenzinho do Cristo Redentor? Assistiu a um ensaio da escola de samba Estação Primeira de Mangueira? Saiu com alguma rainha de bateria ou porta-bandeira da Beija-Flor? Esse tipo de turista conhece Florença, Roma e Paris? Que tal atender o conselho desse cônsul e trocar a lua de mel na Argentina pelas núpcias na Praia do Francês, em Alagoas, ou em Porto Seguro e Itaparica ou Campos do Jordão e Gramado? Essa turma conhece a obra de Aleijadinho e a Igreja de São Francisco, de interior revestido de ouro da Bahia? É ignorância, falta de imaginação ou pura esnobação, pra não dizer frescura? Não tem graça mandar cartão-postal para nossos cronistas sociais, anunciando que os pombinhos curtem a lua-de mel em Garanhuns, que Garanhuns é perto e Gravatá muito manjada. Quanto mais longe e frio, melhor, porque nem Garanhuns nem Gravatá pedem roupas grossas e cachecol.

   Pois é, meus amigos e inimigos, o cônsul tem razão. Só não aconselho trocar a fumaça do vulcão chileno pela poluição atmosférica e infernal de São Paulo porque aí seria permutar seis por meia dúzia, como fazem os técnicos do nosso futebol quando substituem um jogador por outro.

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Recifense de Letras.











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O ANJO



Publicado no JC em 03/08/11

   Quando Tim Maia queimou um show no Plataforma, tentaram arrancar uma declaração de Chico Ricarrey, dono da churrascaria, esculhambando ele. Tinham vendido todas as entradas do evento e o prejuízo do espanhol foi enorme, mas ele respondeu, do alto de seu pedestal de empresário e homem da noite: "Não é problema, os artistas são diferentes de nós, pobres mortais". Isso faz muitos anos e nunca esqueci.

   Quando Amy morreu, lembrei dessa frase do gringo. É frase de muita sabedoria. O que se pode exigir de uma intérprete genial como ela? Que acorde, tome café com leite e papinha, vá à missa, volte pra casa, almoce, tire uma sesta e vá cantar à noite, de terço na mão e cara limpa? Qual cantor não toma seu uísque antes de se apresentar em público? O próprio Chico Buarque não gosta de shows. O grande Orlando Silva injetava na coxa, por cima da calça, morfina antes de enfrentar as multidões, embora tenha negado a dependência até o fim. Elis Regina e Cássia Eller apagaram numa overdose, pra ficarmos só nas brasileiras.

   A genialidade que Deus lhe deu mexia com ela. Tinha consciência de seu enorme talento - e isso pesa. Não é fácil segurar a barra. Não quero justificar esse comportamento nem recomendar droga. Vinícius de Morais dizia que estamos sempre aquém da terceira dose. Mas o corpo termina fraquejando, e a saúde, pifando. Só é bom enquanto dura. Ela foi definhando, visivelmente, pouco a pouco. Foi secando. E como a droga leva à sarjeta, nem dos dentes cuidava. Meu caso com Amy Winehouse foi de amor à primeira vista. Quando minha filha Mamá botou seu DVD na TV, notei que estava diante de uma cantora extraordinária. Mais que isso: personalíssima. Sua bela voz, possante e afinada, não se parecia com nenhuma outra. Foi o que mais me impressionou. Sua incrível postura no palco, também. Com ela, tive a mesma estranha sensação experimentada quando li Grande sertão: veredas. Passei um tempo sem conseguir produzir nada. Que mistério era aquele? Como um escritor podia escrever daquela maneira? Os outros autores não tinham mais graça para mim. Depois do DVD de Amy, eu não curtia nenhuma cantora - a única que ainda suportava era o furacão Ivete Sangalo, pela sua exuberância em cena. Uma pessoa que nos deu tanta alegria e enlevo merecia a vida atormentada que teve? Esse é outro segredo que até as religiões tentam explicar. Cada um segue seu destino. Não há como fugir dele. Seu pai disse uma coisa muito linda na hora da despedida: "Boa noite meu anjo, durma em paz."

   P.S. – A propósito, esta pérola de Jomard Muniz de Britto, no e-mail A morte máxima de Amy Winehouse: "Eles fingiram morrer aos 27 anos porque sabiam pela inconstância da alma não existir nada de novo para apreender".

   * Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Recifense de Letras







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O REGRESSO



Publicado no JC em 27/07/11


   Daqui de cima onde me encontro, vejo os automóveis regressando para casa, ao cair da tarde, depois do expediente. Eles fazem fila na ponte da Capunga e se locomovem lentamente, com os faróis acesos.

   São veículos de toda espécie, carros de passeio, em sua maioria, ônibus de transporte urbano e de linhas regulares do interior, que passam em direção à Av. Caxangá, de onde alcançarão Camaragibe, São Lourenço e outras cidades da Zona da Mata.

   Passam caminhões, motos e, em grande quantidade, ambulâncias, viaturas policiais e do Corpo de Bombeiros. Surgem ainda bicicletas e homens, velhos, mulheres e crianças empurrando carrocinhas de recolher papelão, garrafas pet, latas de refrigerante e cerveja vazias e restos de comida. Alguns desses catadores costumam abrir os sacos plásticos de lixo que os edifícios residenciais depositam nas esquinas para serem recolhidos pelos garis da prefeitura.

   Mas vem muito motorista também, pela Av. Beira-Rio, proveniente da Praça do Internacional, que ultrapassa o sinal da ponte da Capunga na Av. Joaquim Nabuco, em direção à ponte da Torre, com opção de seguir em frente, cruzar o sinal da ponte, pegar o trecho final e novo da Av. Beira-Rio, contornando o enorme terreno da antiga Fábrica da Torre para alcançar o chamado viaduto do Carrefour.

   Isso tudo seria apenas sucinta e enfadonha descrição desse trânsito, na maioria das vezes engarrafado, se esses carros não trafegassem com os faróis acesos, ao entardecer. Não somente para que seus motoristas enxerguem melhor o caminho, mas como quem comunica e avisa que seu expediente acabou naquele dia e ele volta pra casa, pro seu lar, cansado e com a consciência tranquila pelo dever cumprido.

   Hora em que as pessoas caminham e fazem o cooper na pista da Beira-Rio. Pessoas de todos os sexos e idades, que, por qualquer conveniência, preferem se exercitar ao crepúsculo, apreciando o Rio Capibaribe, os manguezais verdejantes e as rosas vermelhas, os botões de tulipa e porcelana e os arco-íris que são vendidos em caminhonetes ao longo da avenida.



   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Olindense de Letras.



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O CAMARÃO CHEGOU



Publicado no JC em 20/07/11



   Telefonema de Garibaldi Otávio, o poeta Gari, de nossa turma da velha Capunga: “Tô na casa de Joca Souza Leão (o cronista que em boa hora veio substituir o insubstituível Renato Carneiro Campos), comendo quiabada com Zé Cláudio. Venha pra cá”.

   Eu não podia ir, mas perguntei se a quiabada levava camarão no espeto, Gari estranhou: “No espeto? Que negócio é esse?”

   - Pois é: já bati todos os supermercados, mercados públicos e feiras- livres do Recife e nunca encontrei o camarão seco no espeto. Esse camarão fantástico, que dá sabor especial a qualquer prato brasileiro, principalmente ao xinxim-de-galinha e ao efó, e é um dos “temperos” e “coadjuvantes” básicos da culinária baiana, como o nome já diz, é o camarão que, depois de cozinhado, ainda na casca, põe-se pra secar, ao sol, para o sol enxugar toda a água de seu corpo, evitando sua decomposição. Em seguida, é enfiado, um por um, em espetos finos e flexíveis de cerca de dois palmos de comprimento, sendo finalmente comercializado. Na Bahia, é encontrado no Mercado Modelo, na feira de Água-dos-Meninos, de São Joaquim e em quase todo o Recôncavo (Zé Claudio sabe disso, pois se empanturrava de acarajé com molho desse camarão nas festas religiosas e profanas - mais nestas que naquelas - do Rio Vermelho, quando jovem, na companhia de Carybé, de mães e filhas-de-santo, quando de sua proveitosa estada na Boa Terra).

   O charme desse picante crustáceo e sua diferença pro camarão seco, vendido no resto do Brasil, é que ele é... defumado. E é aí onde mora seu segredo, porque é essa defumação que faz a diferença e dá caráter ao acepipe.

   Ouvindo nossa conversa telefônica, Joca entra na linha: “Traga o camarão e vamos marcar a quiabada”.

   - OK! Levo o quiabo, o camarão, o azeite de dendê especial, da flor do dendezeiro, e o molho de pimenta malagueta.

   - Não, aí já é caruru de candomblé e eu vou fazer é a legítima quiabada pernambucana. Quiabo, não carece, Zé Cláudio tem um freguês que traz toda semana na porta dele, verdinho, verdinho, quiabo e maxixe.

   - Então, compareço com o camarão, a pimenta e uma honesta cachacinha. Convide Ivanildo Sampaio também, ele gosta de um regabofe desses.

   - Tá fechado.

   Bato o fio pra meu primo Dudu Catharino, em Itaparica, e encomendo o camarão, que já chegou esta semana, mas um contratempo me impede de levá-lo, agora, pra Joca. Temos que esperar um pouco. Paciência. Obrigado, Dudu!

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Olindense de Letras.



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CAOS



Publicado no JC em 13/07/11





   Dia 20 de junho, 10 horas da noite. Estou em casa na Madalena, ouço um barulho estranho, vou à varanda e presencio uma cena deprimente: um caminhão a serviço da Prefeitura, serrando tronco de árvore. Eu falei serrando e não podando. A desculpa de sempre de que estão podando os galhos para evitar curto-circuito com a fiação elétrica não cola. Uma coisa é podar e outra, serrar. Podar é benéfico, serrar é crime ambiental e ecológico. Caminho diariamente nessa calçada e constato que são galhos adultos e grossos, os serrados, que não oferecem perigo algum à rede elétrica. Como se explica que agentes, funcionários ou terceirizados de um órgão público cometam esse absurdo impunemente? E quem lhes dá

   essa ordem ou permite que eles façam isso?

   Além desse crime, outro: a poluição sonora. A lei proíbe barulho depois das 10 horas da noite - e esse caminhão derrubou árvores até 11:30h, desrespeitando a legislação e incomodando os moradores do bairro.

   Dia seguinte, 21, peguei o carro às 7:15h para deixar minha filha Joana Elisa na Faculdade Marista, em Apipucos. Na volta, passei no Bonsucesso, em Olinda, peguei meu amigo James Cardoso e seguimos para Pau Amarelo, onde eu iria tratar de negócios. Ao tentarmos atravessar os Bultrins, quase ficamos atolados porque o canal tinha transbordado. Fui morar em Olinda em 1964, esse canal já derramava quando chovia, paralisando o trânsito em suas imediações. Passados exatos 47 anos, entra prefeito, sai prefeito, o problema continua o mesmo. Constroem-se viadutos e vilas residenciais, promovem-se “o melhor Carnaval do Mundo” e tudo o mais que possa “aparecer”, e o canal dos Bultrins continua o mesmo. Trata-se de síndrome cultural dos políticos de todo o Brasil e da América Latina. Quem quiser se aprofundar no assunto, leia a obra de Padre Lebret.

   Evitei a Carlos de Lima Cavalcanti e peguei a Getúlio Vargas rumo a Pau Amarelo. O engarrafamento na Avenida Getúlio Vargas, no sentido subúrbio – cidade, era gigantesco porque os motoristas não podiam passar pelos Bultrins. Ao chegar em Rio Doce, consultei o relógio, marcava 10:15h. Calculei que quando voltasse de Pau Amarelo teria que enfrentar grande congestionamento a partir do Janga. Resolvi voltar para Recife. Enfrentei outra paralisação e cheguei ao escritório às 11 horas. Resumindo: 3:45h dirigindo um automóvel sem produzir absolutamente nada. Durante todo o percurso, a CBN informava que em todo o Recife, principalmente Piedade, Boa Viagem, Avenida Presidente Kennedy, Caxangá e Ouro Preto, o trânsito estava travado.

   Some-se a isso: stress, consumo de combustível, desgaste do veículo, dores na coluna, compromissos não-cumpridos ou adiados, prejuízos financeiros por esses compromissos profissionais não-realizados, a quantidade incalculável de pessoas prejudicadas não diretamente, mas pelo transtorno. Somem-se ainda as constantes passeatas de grevistas que infernizam o centro comercial da cidade, perturbando a chamada maioria silenciosa que quer trabalhar para sustentar a família. Afinal, a maioria da população nada tem a ver com reivindicações de classe alguma, seja ela de bombeiros, de funcionários públicos federais, estaduais e municipais ou de motoristas de ônibus, etc.





   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Federação Internacional dos Jornalistas.







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TAPA NA CARA



Publicado no JC em 06/07/11


   Não existe agressão e injúria piores e mais desmoralizantes do que o tapa na cara. Pois bem, desde os anos 20, quando começaram a jogar futebol, uruguaios e argentinos se especializaram nessa prática covarde e escrota. Na minha terra dizem: “Cara que mamãe beijou, vagabundo nenhum põe a mão”. Muita gente já morreu por causa disso.

   Passei minha infância escutando jogos do selecionado brasileiro com uruguaios e argentinos, irradiados por Oduvaldo Cozzi (o maior speaker esportivo brasileiro de todos os tempos), Ary Barroso e Jorge Curi. Eram jogos violentíssimos, que sempre acabavam em grossa pancadaria. Não se diga que o jogador brasileiro é santo. Todos sabem que ele vem, na sua maioria, de camadas sociais sem instrução e sem educação. Mas essa peculiaridade infame e infamante do tapa na cara é marca registrada de argentinos e uruguaios.

   Não adianta negar que Obdúlio Varela deu um tapa na cara de Bigode, em pleno Maracanã, na Copa de 50. Embora 10 jogadores do nosso time neguem, o ponta-esquerda Chico confirmou que houve a agressão. Tanto que sugeriu a Bigode trocar de posição com ele: Bigode iria para a ponta e ele, Chico, desceria para enfrentar Obdúlio.

   O murro na cara, mesmo quando fratura o queixo da vítima ou o mata, como de vez em quando acontece no boxe, não é tão achincalhante e humilhante quanto o tapa na cara. Na partida do Santos com o Peñarol, no Pacaembu, um uruguaio puxou o cabelo de Neymar, quando ele estava caído no campo, e outro deu-lhe um tapa na cara. Isso, aqui no Brasil, perante 40 mil torcedores, o Governador do Estado, o Prefeito, Pelé, representantes da Confederação Sul-americana de futebol e jornalistas brasileiros e estrangeiros.

   Esse é um problema cultural. A pergunta é até quando uruguaios e argentinos usarão desses expedientes condenáveis? Será que eles não progridem, não se civilizam? Vimos a final Barcelona x Manchester United, em Wimbledon. Jogo limpo e leal. Quando terminou, o técnico inglês cumprimentou, parabenizou e abraçou o colega espanhol. Que diferença!

   No Pacaembu assistimos aos uruguaios praticarem faltas desclassificantes e debochadas, sob as vistas complacentes e pusilânimes do árbitro e de seus auxiliares, como fazem há 90 anos. Se a partida fosse em Montevidéu, não havia possibilidade de o Santos ganhar, porque lá eles tomam o jogo. Interessante é que fazem tudo isso impunemente, diante das “otoridades” do futebol mundial. Mas esperar o que de um Ricardo Teixeira, acusado de corrupção por toda a imprensa europeia? Que moral tem esse cidadão para tomar qualquer atitude firme e positiva?

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Pernambucana de Letras Jurídicas.



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CHEGA DE SAUDADE



Publicado no JC em 29/06/11  




   Se fôssemos contar todas as estórias e histórias que giram em torno do oitentão, folclórico e genial João Gilberto, este espaço não dava. Gosto muito de três delas. A primeira: seu primeiro disco de 78 rotações, prensado em cera de carnaúba, foi imitando o vozeirão de seu eterno ídolo Orlando Silva; a segunda a do gato que não suportando mais os repetidos e intermináveis ensaios e acordes de João, ao violão, preferiu suicidar-se pulando do 43° andar do edifício onde ele morava em Nova York; a terceira é a do canário. Ele estava ensaiando um samba com Gilberto Gil, um canário da terra pousou na árvore defronte de sua casa. Quando o canário começou a estalar, ele parou o violão e virou-se para Gil: “No Brasil, até canário desafina”.

   A propósito, encontro Tancredo Loyo Borba, Ivan Brondi de Carvalho e Manoel Caetano, na Rua da União, e a conversa é sobre João Gilberto. Manoel Caetano, competente perito criminal aposentado da velha Secretaria da Segurança Pública de Pernambuco e violonista, conta que pelos anos 60 ou 61, foi assistir a uma apresentação do famoso compositor no auditório do Jornal do Comércio. Depois do show “que ninguém gostou”, ele, Manoel, e Atalarico Moreda convidaram João Gilberto para uma canja no Cabanga, e João topou.

   Manoel, Atalarico e João Gilberto chegaram ao Cabanga às 10 horas da noite e lá encontraram Laíz Cabral da Costa, “que tocava violão e cantava bem”, o saudoso Comodoro Jorge Asfora, o médico boêmio Paulo Bittencourt, Aldo Motta, exímio pianista, alvirrubro doente, também conhecido como Aldo Mussica, e Cecília Cruz Ramos, entre outros.

   Descontraidamente, todos sentaram no chão e João Gilberto “o homem mais educado e comedido que conheci”, diz Manoel Caetano, começou a cantar, ao pinho, atendendo pedidos e respondendo com paciência e quase sussurrando às perguntas que lhe faziam. Aproveitou para propagar seu antológico Chega de saudade e contou que, ao faltar uma faixa para fechar o disco, encaixaram a composição O pato. Depois da canja, à qual João Gilberto apresentou-se de paletó esportivo e camisa social com o colarinho fechado, não fumou nem tomou bebida alcoólica, Manoel e Atalarico foram deixá-lo no Grande Hotel. Até hoje Manoel Caetano lamenta não estar com máquina para bater a foto histórica com o cantor de Juazeiro.

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Federação Internacional dos Jornalistas.



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PAPO DE BOLEIRO


Publicado no JC em 22/06/11



   Estou tomando o café da manhã numa padaria da Madalena, chega o Engenheiro Civil Henrique Campelo, ex-craque amador de futebol e exímio violonista. Vai logo dizendo que gostou muito da matéria do encarte do Jornal do Comércio onde estou fazendo “pontinho”, de cabeça, no dia da final de Santa Cruz x Sport, pauta de Ivanildo Sampaio. O papo, como não podia deixar de ser, enveredou pelo futebol. Henrique era ponta-esquerda titular do time da Poli (Escola Politécnica de Engenharia), pelos anos 50, sendo meu irmão Carlos Aloysio o ponta-direita. No encontro, nos queixamos de que os jogadores brasileiros de hoje não sabem bater escanteio nem centrar sobre a área em faltas de bola parada, fundamentos importantíssimos para decidir uma partida. E citamos o exemplo dos argentinos e europeus que centram com perfeição. Alvirrubro sadio, Henrique constatou que o Náutico perdeu três escanteios seguidos contra o Bragantino, nos Aflitos, recentemente. E lembramos que Eliézer, pequeno ponteiro do Sport, da década de 50, nunca desperdiçou corner.

   A propósito, Henrique contou uma história deliciosa. Foi jogar no Rio de Janeiro pelo selecionado universitário de Pernambuco, contra o time do Estado do Rio. O jogo terminou empatado e a decisão foi pros pênaltis. O titular da ponta-esquerda de Pernambuco era Mainha, do Santa Cruz, e Henrique, seu reserva. Por feliz coincidência, ele, Henrique, estava no banco, ao lado de Zizinho, treinador do Rio. Henrique segura meu braço, emocionado: ”Como eu queria ter tirado uma foto com o Mestre Ziza!”. Naquela noite, os cobradores de pênalti eram Amaro, famoso médio-volante do América, pelo Rio, e Mainha, por Pernambuco. Cada um converteu mais de vinte pênaltis, até que Amaro isolou um e o escrete universitário pernambucano ganhou a partida. Henrique e Mainha eram da velha escola de Vevé, célebre ponta-esquerda paraense do Flamengo; de Chico, do Vasco; de Rodrigues, do Palmeiras; de Pedro Amorim, do Fluminense; de Isaltino, do Bahia; de Zeca, do Náutico; de Canhoteiro, do São Paulo, e de Mario, do Corinthians, que não perdiam centro sobre a área nem escanteio. Naquele tempo, treinador de futebol era chamado de técnico. Hoje, é “professor”. Falta a esses “professores” ensinarem seus “pupilos” a centrar e bater corner. Afinal, o escanteio é um dos principais lances do “popular esporte bretão”. Basta recordar nossa derrota para a França na Copa de 98.

   P.S.: O discurso de despedida de Palocci, da Casa Civil, foi um primor de cinismo e desfaçatez. Teria sido redigido em conjunto com Collor, Sarney e José Dirceu?

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Recifense de Letras.





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O CELULAR, O CÂNCER E O CAFAJESTE



Publicado no JC em 15/06/11 



   Notícias recentes dizem que o celular pode causar câncer. De outros, não sei, mas desse câncer, estou livre. Não sou médico, mas imagino que passar o dia com esse aparelho no ouvido não deve ser bom para a saúde.

   O problema é o individuo achar que seu uso lhe confere status social e profissional. É incrível a quantidade de panacas que falam ao celular enquanto dirigem o carro, almoçam, jantam ou pegam o elevador. Interessante como um simples aparelhozinho digital causa tanto deslumbramento nos homens e mulheres de todas as classes sociais. Tem coisa mais chique do que uma madame que vai caminhando pela Imperatriz, estancar, abrir a bolsa e atender o celular? Existe deslumbramento maior do que o sacripanta, que está no restaurante, interromper de repente o almoço e passar a fechar negócio com o interlocutor, em voz alta, diante dos comensais? A pergunta que não cala: Será que com a ameaça do caranguejo esse pessoal vai diminuir ou limitar o uso desse troço?

   Dia sete, participei de um debate sobre cafajeste em Geraldo Freire. Na ocasião, fizeram a lista de vários tipos de cafajeste, mas estou vendo que esqueceram do cafajeste do celular, o que aproveito para fazer agora. No programa, concluíram os debatedores, inclusive Geraldo, que a característica principal do tipo é não respeitar o direito alheio. Agora, com o progresso tecnológico, que não sabemos onde irá parar e que é uma faca de dois gumes, pois tanto ajuda aos que precisam se comunicar com urgência como serve de instrumento para o crime, o celular caiu como uma luva na mão do cafajeste, pois ele se julga no direito de gritar, no aparelho, pouco se lixando se o assunto abordado interessa ou incomoda quem está ao seu lado.

   Tenho a impressão, bem ou mal comparando, que o provável câncer ligado ao celular está na proporção direta do câncer ligado ao fumo: tem nego aí que prefere morrer de câncer a deixar o fumo.

   Agora mesmo, cientistas ingleses concluíram que cigarro emagrece porque a nicotina age no cérebro diminuindo o apetite, o que faz o viciado comer menos. Promoveram uma enquete perguntando se os fumantes preferiam engordar ou morrer de câncer e para surpresa geral a maioria deles respondeu que prefere a segunda hipótese.

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Associação Brasileira de Imprensa-ABI.



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A VITÓRIA DO FUTEBOL



Publicado no JC em 08/06/11



   O título do Barcelona ganhando o Campeonato Europeu é a vitória do futebol. Do velho futebol jogado com a bola no chão, de pé em pé, dos grandes times brasileiros e sul-americanos de todos os tempos. De esquadrões treinados por Fleitas Solich, Otto Glória, Martin Francisco, Gentil Cardoso, Rinus Michels e Cruyff. De clubes como os antigos Flamengo, Fluminense, Botafogo e Vasco; Boca Juniores e River Plate. De artistas feito Domingos da Guia, Fausto e Zizinho; Labruna, Nestor Rossi e Di Stefano. Quando os gringos concluíram que não podiam enfrentar os deste Continente de igual para igual, de peito aberto, pois lhes faltavam engenho e arte, resolveram criar um antídoto para o veneno. E esse antídoto foi a preparação física e alta velocidade de seus atletas, caprichando na marcação cerrada e na retranca. E criaram vários sistemas defensivos. Aí bateu o complexo colonialista dos nossos treinadores, aquilo que Nelson Rodrigues chamava de “complexo de vira-lata”. Se o europeu atacava daquela maneira, sendo um povo civilizado e inteligente, nós tínhamos que nos enquadrar naquelas táticas, desprezando o individualismo e a picardia dos sul-americanos. E nuvens tenebrosas e carregadas de chumbo desceram sobre o nosso futebol. A primeira providência foi extirpar do meio de campo craques habilidosos. O importante agora é destruir os lances do adversário, em vez de construir. O garoto que chegar pra treinar com pinta de Danilo Alvin, Dequinha, Ademir da Guia, não tem chance. A preferência é pelos brucutus, os pernas-de-pau, os brutamontes, os carrinhos criminosos e as cotoveladas covardes. O futebol transformou-se em esporte truculento e feio. Dunga foi, como jogador, e continua a ser, como técnico(aposentado?), lídimo representante dessa era.

   Agora vem o Barcelona com seu fascinante toque, a bola rolando sobre o gramado, porque futebol é no chão, como ensinavam Nilton Santos e Maneca, que nunca sujaram o calção. E esse Barcelona parou os gigantes ingleses do Manchester United, dentro da casa deles, perante sua fanática torcida, e mostrou aos vaidosos inventores do futebol que centra alto quem não sabe passar rasteiro. E Messi diz que o futebol é o esporte mais bonito que existe porque nele tamanho não é documento. Viva o Barcelona! Muito obrigado, rapaziada do Barça! Obrigado, Guardiola.

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Federação Internacional de Jornalistas.







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O CAFAJESTE



Publicado no JC em 01/06/11



    O cafajeste é um espécime privilegiado porque tem lídimos representantes em todas as classes sociais, raças e profissões. O cafajeste tem capacidade pra furar qualquer tipo de fila, seja de cinema, teatro, elevador ou supermercado. Se não me engano, foi Nelson Rodrigues quem disse que o cafajeste é capaz de roubar o pirulito da boca de uma criança. Falar nisso, em recente entrevista ao Jornal da ABI, Juca Kfouri disse que Nelson Rodrigues dizia que até para se chupar um picolé é preciso ter sorte. E é verdade. Perdi uma namorada porque telefonei convidando-a pro cinema dois minutos depois que o rapaz que terminou casando com ela havia telefonado.

    Conhece-se o cafajeste pelo trajar, andar, sentar. Não confundir o trajar do cafajeste com o do antigo e clássico malandro carioca. O malandro carioca do meu tempo gostava de usar calça de linho branco com bainha boquinha e sapato tipo canoa de duas cores e bico fino. Chamava-se calça “boquinha” porque sua boca era apertada na altura do tornozelo. O lendário delegado de polícia Padilha, que era pernambucano, e teve muito problema com outro pernambucano, morador e valentão da Lapa, Madame Satã, costumava colocar um limão por dentro da calça do malandro. Se o limão não passasse pela boca da calça, Padilha o prendia em “flagrante delito” por “vadiagem”. Padilha media e avaliava o potencial criminoso dos malandros dos morros cariocas pela circunferência da boca de suas calças.

   Mas o que eu estou querendo dizer ao leitor é que o sujeito pode até ser malandro sem ser cafajeste. Ou seja, nem todo malandro é cafajeste, e um ricaço frequentador de altas rodas, sendo um ariano dos “mais puros”, pode ser capadócio.

   O motorista que corta sinal, invade contramão, estaciona em local proibido é classificado de infrator de trânsito, mas, antes de mais nada, para cometer todas essas infrações, ele tem que carregar em seu corpo a alma do cafajeste; daquele que não respeita as mais elementares regras da convivência social. O cafajeste nasce feito.

   Uma das características do cafajeste é se lixar pro direito alheio. Outro dia, eu estava almoçando num restaurante tradicional daqui da cidade, quando um cara da mesa do lado soltou um arroto estridente. Vendo que eu tinha notado, ameaçou: “Dei esse e sei dar maiores ainda!”

     Confesso que já convivi com gregos e troianos, mas nunca digeri o cafajeste - e parece que quanto mais rico, mais chato e intragável, porque o capadócio pobre tem suas limitações e medo de represálias. O rico sente-se importante e seguro a tal ponto que capricha propositadamente nas cafajestadas, pra chocar o bem comportado.

    *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Olindense de Letras.





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O GALO-DE-CAMPINA



Publicado no JC em 25/05/11



   Estou no escritório, adentra portador com um embrulho em papel madeira. Gosto muito de pacote grande porque sugere presente grande. Abro a encomenda sofregamente (gostou do sofregamente, Zé Cláudio? – estou descontando o “gáudio” do seu bilhete).

   Surpresa: o embrulho continha tela de Zé Cláudio, um belo galo-de-campina cantando num canteiro de pétalas de xanã. Régio presente, que, no primeiro momento, me deu problema. Onde colocar a tela? Na parede da sala de espera do escritório? Sim, porque, além de enfeitá-la, eu queria que meus clientes soubessem que tenho um quadro de Zé Cláudio. Mas, logo, a dúvida cruel: e se a furtarem? Não estou acusando ninguém, mas hoje em dia... Vou afixá-la no meu quarto, junto de uma paisagem de Olinda, vista do Alto da Sé de André Nóbrega. Mas seria egoísmo de minha parte, porque impediria as visitas (poucas) de apreciarem o passarinho. A solução foi colocar o quadro na minha sala de trabalho, de frente para a porta da entrada, podendo as pessoas curtirem o pássaro, e ao lado da estante, que apelidei de “galeria do amor”, onde estão os porta-retratos de meus filhos, netos e alguns ingratos ex-amores, que ninguém é de ferro. Quando vier pro cafezinho, Zé, você confere.



    Impressiona em Zé Cláudio ele ter conseguido pintar de maneira tão simples, sem resvalar para o piegas e o vulgar. Ouso dizer que Zé Cláudio representa para a pintura o que Rubem Braga representou para a crônica, transmitindo mensagem ao mesmo tempo fulgurante, digna e enxuta, de rara e intensa luminosidade, sem traços supérfluos, concessões suspeitas a escolas ou modismos do mercado; ao mau gosto granfino, o brega da classe média, os ares rarefeito da alta burguesia, a cafonice do novo rico, os apartamentos chinfrins.

    Ninguém se engane: ele não nasceu pintando tão bem assim, Jesus Cristo muito o ajudou, dando-lhe talento, mas sua convivência com notáveis artistas plásticos brasileiros, feito Mirabeau, Caribé, Pancetti, Mário Cravo e Di Cavalcanti, entre outros, e seu árduo aprendizado em Roma, os meses singrando rios e igarapés da Amazônia, desbravando a imensa floresta com Paulo Vanzolini, contribuíram decisivamente para o amadurecimento de sua obra. Ele atingiu, assim, a difícil simbiose de se tornar pintor de telas aparentemente singelas mas de incomparável força telúrica e deslumbrante colorido (é quem melhor emprega o vermelho e verde no Brasil), impregnado de cintilantes nuances da fauna e flora tropicais, com ressaibos de baianidade, que só ele sabe fazer. O bico aberto do galo-de-campina que decora nosso escritório não transmite sofrimento ou amargura, naturais numa criatura nordestina. Ao contrário: o bom passarinheiro é capaz de “ouvi-lo” dando o açoite clássico e compassado: “Padre, Filho, Espírito Santo”. Saravá, Zé Cláudio! Que Oxóssi o proteja e guarde em seu santuário, na encosta da Colina da Igreja do Monte.

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.





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SUBORNO


Publicado no JC em 18/05/11




   Suborno é uma figura jurídica nebulosa e escorregadia que sempre houve, vai haver, mas de difícil comprovação, porque quem compra e quem se vende nega o ato peremptoriamente, inclusive por saber que é uma “transação” que não costuma apresentar testemunhas. No futebol fala-se muito em propina, raramente flagrada.

   O primeiro suborno real de que tive notícia foi do árbitro baiano Clinamute Vieira França, campeão de luta livre e amigo do lendário Waldemar Santana, na década de 60. Dizem que ele foi comprado por Berenguer, então presidente do Vitória, numa decisiva contra o Bahia, ganha pelo Leão da Barra por 1 x 0, gol de mão do meia-esquerda Kléber Carioca. Segundo a crônica, Clinamute recebeu o dinheiro da mutreta, em espécie, que estava dentro de uma pasta de couro e que lhe foi entregue por um diretor do Vitória, na Igreja de São Francisco, aos pés do altar de Santo Antônio. Coisas que só acontecem na Boa Terra.

   Folclórico árbitro paulista, Eunápio de Queiroz, confessou que participava de mondé. Hoje, enquanto bato essas linhas, este JC publica que na Inglaterra estão apurando fraudes de manipulação de resultados de partida de futebol, visando prêmios lotéricos.

   Caso célebre foi o de Manga. João Saldanha, técnico alvinegro, cismou que ele tinha sido comprado pelo bicheiro Castor de Andrade, dono Bangu, e meteu-lhe bala, obrigando o goleiro a pular um muro de dois metros de altura. Nem as balas nem as acusações pegaram.

   Outro rebu foi num BA-VI dos anos 50. Osório Vilas-Boas, cacique do Esquadrão de Aço e delegado de polícia, desconfiou que Oswaldo Baliza, arqueiro tricolor, havia se vendido, levou o time do Bahia para concentrar na Ilha de Itaparica. Em lá chegando, conforme a lenda, Vilas-Boas deu um “aperto” em Baliza ameaçando-o de uma pisa se o boato se concretizasse. Mais uma vez, nada ficou provado.

   Aqui, chegaram a bulir com o honesto e legendário Manuelzinho, e acusaram o ponta-de-lança Hamilton, rapaz de bem e grande jogador, de ter se vendido ao Sport numa final com o Náutico quando Hamilton, “devidamente subornado” acertou duas bolas nas traves rubro-negras. Haja pontaria!

   Papo de suborno ou tentativa de suborno, assim como boatos de cheia que causam pânico numa cidade e têm pena muito pequena em relação ao dano material e moral que causam a terceiros, só merecem um adjetivo: crime escroto.

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Pernambucana de Letras Jurídicas.







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Ainda o bullying



Publicado no JC em 11/05/11



 
   Está fazendo uns 20 anos que um crime abalou Salvador. O massacre de cerca de oito crianças, se não me falha a memória, num ritual macabro de magia negra numa cidade pobre do interior da Bahia. Entrevistado por uma revista do Sul, para esclarecer o crime, o delegado Medrado, ex-beque-central do Vitória, que presidia o inquérito policial, respondeu: “Leiam Os Sertões. Está tudo lá”. Poderíamos acrescentar ao conselho de Medrado, que quem quiser maiores explicações para o bullying de Realengo re(leia) Recordações da Casa dos Mortos e Coração das Trevas.

   Em Recordações da Casa dos Mortos, Dostoievsky analisa a alma de seus colegas presidiários, em prisão na Sibéria, e se impressiona com o cinismo, a desfaçatez e principalmente a frieza com que os apenados cometiam os crimes mais diversos e hediondos e a total falta de arrependimento da grande maioria deles. Isso serviu de matéria para pesquisa cientifica de famosos criminalistas, a exemplo dos italianos Ferri e Lombroso, sucedendo-se o estudo da moderna psiquiatria criminal que até hoje procura delimitar a fronteira existente entre o cérebro do criminoso (nato?), que pratica o crime por ser louco, digamos assim, e o individuo que comete o mais perverso dos delitos sem ser considerado, clinicamente, desequilibrado mental (predisposto ao crime?), sem externar remorso ou sentimento de culpa.

   Em Coração das Trevas, o escritor inglês Joseph Conrad, nascido na Ucrânia, marinheiro e comandante de veleiros do começo do século XIX, além de esmiuçar o psique de seus personagens, descreve e registra, com tintas fortes e impiedosas, o mal causado pelos países colonizadores às populações das nações colonizadas.

   Temos aí, portanto, nessas obras citadas, fatores endógenos e exógenos que devem ser computados e estudados para possível exegese do trucidamento dos estudantes de Realengo. Mas qualquer que seja o resultado, se é que a ciência conseguirá desvendar o complicado caminhar do homem, através dos séculos, desde a caverna até o avião a jato, a conquista da lua e a bomba de hidrogênio, temos que reconhecer que a culpa desses dramas tenebrosos é de todos nós e não somente de um indivíduo. Que fomos nós que construímos essa sociedade que aí está.

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Olindense de Letras.



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A solidão do bullying



Publicado no JC em 04/05/11





   Bullying é coisa velha nas escolas, colégios e universidades do Brasil e do exterior. No longínquo ano de 1943, eu estudava no segundo curso primário do Colégio Nossa Senhora das Vitórias, dos irmãos Maristas, na Bahia. Na nossa classe havia um menino, filho de português, dono de uma roça, situada no Vale do Canela. O português criava porcos e os matava ali mesmo, na sua propriedade, para vender a carne e a banha, muito valorizada comercialmente naquela época. Seu filho, esse nosso colega de turma, cujo nome esqueço, tresandava a banha de porco, e, quando entrava na sala , os colegas imitavam o grunhido do animal. O menino sentava na última banca, baixava a cabeça e chorava. Nunca o vi conversando ou participando de brincadeiras com os colegas. Durante o recreio, permanecia sozinho, no canto dele. Nunca presenciei solidão igual àquela. Jamais esqueci esse menino e nem sei que fim levou porque depois me transferi para o Colégio Santo Antônio, de Natal.

   Vocês querem bullying pior do que os humilhantes castigos sofridos pelos alunos de todos os Colégios Maristas do Brasil naquela época? Os alunos castigados tendo que ficar de pé, braços cruzados, a cara enfiada na parede, nos corredores do colégio, expostos ao escárnio dos outros?

   Não faz muito tempo, uma das minhas filhas jogava futsal no colégio onde estudava aqui no Recife , quando foi atingida por trás , deslealmente, pela jogadora adversária, e caiu machucando o joelho. No lance seguinte, a mesma jovem que a atingiu repetiu o lance, minha filha desabou com a cabeça no chão, foi hospitalizada com suspeita de traumatismo craniano, ficou com sequelas na coluna vertebral que a incomodam até hoje. Minha ex-mulher reclamou da mãe da menina agressora, que respondeu com risos debochados e chacotas. O arbitro da partida nada fez e a agressora continuou jogando tranquilamente. Escrevi um artigo sobre o assunto, e, como se trata de estabelecimento religioso, mandei cópia para a madre superiora, que nunca se dignou responder, embora seja educadora e como quem cala consente, o colégio onde aconteceu o fato é conivente com o bullying.

   Não há um culpado apenas pelo massacre de Realengo. O massacre de Realengo é o resultado dos valores e da cultura injusta, preconceituosa, desumana e mesquinha sedimentada na sociedade que criamos através dos séculos, a partir do homem da caverna, passando pelo colonialismo, a escravidão dos povos, as guerras fratricidas e a formação e cristalização de uma elite cujo maior pecado talvez seja a soberba.





    *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Federação Internacional dos Jornalistas.







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Lição de humildade



Publicado no JC em 27/04/11




   Há muito não passo por aqui. Ando devagar e nunca pensei que essas árvores fossem tão altas. Antigamente havia muito ninho de bem-te-vi, na copa dessas cajazeiras, mas hoje não sei da existência de nenhum deles. Sei que não é do interesse do leitor, principalmente dos preocupados com a bolsa de valores e o preço do dólar, mas confesso que gosto muito de bem-te-vi, de sua postura elegante, seu charme, canto trissilábico alto e compassado. De tão valente costuma escorraçar os gaviões malvados que tentam atacar seus ninhos e comer seus filhotes.

   Quando me mudei de casa pela última vez, perdi alguns livros, inclusive Pássaros do Brasil, de Eurico Santos. Eu costumava consultá-lo, para tirar dúvidas, antes de escrever artigos que falassem em passarinho.

   Uma informação interessante dada por Eurico Santos, e que nunca mais esqueci, é a de que o   bem—te-vi gosta da companhia do homem, habitando locais próximos das fazendas, praças e cidades. E eu me pergunto: será que o bem-te-vi tem razão? Não teria ele medo de, convivendo com os homens, ser assaltado, preso, envenenado, torturado, estuprado ou levar um traiçoeiro e covarde tiro de badoque nos peitos?

   Quando menino, cansei de ver bem-te–vi morto nos quintais, jardins e parques arborizados da Bahia, vitima do badogue dos moleques, seu pequeno corpo ressecado pelo sol, em decúbito dorsal, as perninhas negras e finas esticadas pra cima, sendo devorado por formigas miúdas, daquelas de mordida dolorosa. Uma pena porque, além de tudo, o bem-te-vi ostenta uma bela plumagem amarelo-ovo e asas pretas, tornando-se atração dos artistas plásticos. Zé Claudio mesmo (que costuma almoçar apimentadas quiabadas preparadas pelo chefe Joca Souza Leão, o cronista que Recife estava precisando) pinta muito bem-te-vi e me prometeu uma tela (paga) com um sangue-de-boi, conhecido no Rio de Janeiro como tiê-sangue, ou um galo–de-campina, chamado, na Bahia, de cardeal - mas o verdadeiro cardeal é aquele que ostenta penacho vermelho e habita o Rio Grande do Sul.

   Vou passando por uma rua da Madalena, ouço o canto de um pássaro, que, a distância, me parece caboclinho. Paro, vejo-o pendurado no galho de um brasileirinho. O porteiro do prédio, onde está o passarinho, nota a minha curiosidade e vem logo falar comigo. Trava-se, então, o seguinte diálogo entre nós:

   - Que passarinho é esse?

   - Esse é o caboclinho branco.

   - Caboclinho branco? Nunca ouvi falar...

   - Pois é, nasceu no cativeiro. Comprei uma gaiola grande com cumbuca e espalhei um bocado de folhas secas e capim na tábua. Soltei um casal adulto de caboclinhos dentro- e nasceu esse caboclinho branco. Interessante é que ele canta mais forte do que os pais.

   Esse fortuito episódio do cotidiano foi mais uma lição de humildade para mim, veterano passarinheiro, que pensava saber tudo sobre passarinho.



   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.








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Os celerados


Publicado no JC em 20/04/11


 
O assunto é chato, mas urge providência. Os motoqueiros, salvo aqueles que amam motocicleta e as conservam bem conservadas para passeios intermunicipais ou interestaduais com os amigos, formam, cada vez mais, um esquadrão de celerados que transgridem todas as normas do trânsito e do bom senso, infundindo o pânico nas principais cidades brasileiras. Dizem as estatísticas que na capital de São Paulo morre uma média de três motoqueiros por dia.

Uma sensação desagradável é a do motorista de carro de passeio ou qualquer tipo de veiculo motorizado, que se vê ultrapassado por todos os lados por enxames de motoqueiros. Na semana atrasada, às seis e meia da noite, eu ia dirigindo pela Rua da Aurora, em direção à Avenida Mário Melo. Defronte da Compesa, fui abalrroado por uma moto que tentava me cortar pelo lado direito. Ela chegou a bater no meu carro e caíram o motoqueiro e a moça da garupa. Freei e encostei no meio-fio do lado esquerdo, desci e fui atender o casal que estava no chão, embora a culpa toda tenha sido do motoqueiro. Que logo se levantou, e ela permaneceu deitada no chão, perguntando a todo instante: “Cadê ele? , cadê ele?¬” – referindo-se a mim. Nisso, chega um rapaz, que não se identificou, examinou a moça e disse que ela não tinha nada , ela se ergueu , caminhou até a calçada e parou, em pé.

Nessas alturas, como diria meu chapa Cícero do Samburá, cerca de dez motoqueiros já tinham estacionado e olhavam para mim. Aí é onde a porca torce o rabo. Os motoqueiros, em geral, tirando as honrosas exceções que confirmam a regra, têm o péssimo hábito de coagir o motorista de automóveis, a quem tratam, a priori, como inimigos da classe. Classe unida nas arbitrariedades e violências (a maioria dos homicídios é cometida por motoqueiros usando capacetes ou encapuzados) no trânsito, das quais se julgam vítimas, na alegria, quando passam em grupos de algazarra,na morte e na dor. Quanto a essa coação, sugiro que a Policia arme um esquema preventivo para proteger da fúria dos motoqueiros o motorista profissional e amador que não são culpados nesses acidentes – pois com a perícia ainda não realizada - de serem coagidos e agredidos pelos vândalos das motos.



*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Olindense de Letras.





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  E agora, José?

Publicado no JC em 13/04/11

 Não tinha quem me fizesse pegar um Ita no Norte e ir pro Rio de Janeiro conversar com... Carlos Drummond de Andrade. Em matéria de varão, eu só gostaria de conhecer, lá praquelas bandas do Sul Maravilha, Noel Rosa e Jayme Ovalle. Talvez desse uma esticadinha até Porto Alegre, terra de uma querida amiga, para tomar vinho com ela, Lupicínio Rodrigues e Mário Quintana. Mais pela amena companhia de minha amiga. Rever a mulata Esmeralda de Barros e a escultural Nélia Paula. Rubem Braga foi a uma reunião do Sabadoyle, pontificada por Drummond. Quando lhe perguntaram se ia frequentar essa Academia, respondeu: “Não vou a lugar que só se fala em literatura e não tem uísque nem mulher bonita”. Concordo com o sabiá da crônica.

Gostaria de curtir a Lapa do Poeta da Vila, jantar com ele e Ceci no cabaré Novo México. Infelizmente não alcancei o esplendor da Lapa. Com Ovalle, teria muito o que aprender sobre boêmia ,catolicismo, seus ressáibos de macumba e  amor pelas negras. E, quem sabe, Lupicínio me aconselharia a suportar melhor as dores de cotovelo.
Indo ao Sul, que tal uma escala em Salvador, um papo com Jorge Amado, aquele sim, escritor universal traduzido em 36 idiomas, figura humana encantadora e charmosa? Uma seresta ao violão de Caymmi na Lagoa do Abaeté, em noite de lua cheia, ou na praia de Itapoã?
Eu ia do Recife pra São Paulo num Caravelle da Cruzeiro do Sul. Quando pousamos no aeroporto Dois de Julho, Martha Rocha surgiu esplendorosa,na pista, subiu a escada do avião e parou na porta de entrada. Belíssima, elegantemente trajada, causou frisson nos passageiros. A gaúcha a meu lado gritou: “Uuuuuuuau!”
Como eu gostaria de dançar o bolero Besame Mucho em Acapulco, com Maria Felix, ao som da orquestra de Xavier Cugat! E, depois, um cuba-libre com Agustín Lara, Ernesto Lecuoana e Consuelo Velásquez. E se, no fim da festa, Cláudia Cardinalle quisesse me dar? Em boa hora, esse vibrante matutino fez reforma gráfica. Olha aí, pessoal, da página Opinião, cuidado, com artigos prolixos, pesados,a divisão dos parágrafos, o excesso de citações e aspas, que cansam e afastam os leitores! Não esquecer que muita citação reflete vaidade e insegurança. Que aspas são o urubu do texto. E agora, José? Agora vou ler um poeta chamado Joaquim Cardoso, flor de pessoa.

*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.   



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Ousadia

Publicado no JC em 06/04/11

 
   Estou no escritório, 11 horas, toca o telefone:
                 - Alô, o senhor faz crime?
                 - Depende do crime.
                - Aqui é o “Tenente Mozart”. Estou com duas viaturas da PM, na BR – 101, limite da Paraíba com Pernambuco. Prendemos o indivíduo chamado Clóvis. Dr. Clóvis. Ele está vindo do Piauí, com vinte e cinco mil reais em dinheiro e uma pistola 380. Os vinte e cinco estão declarados no Imposto de Renda, a pistola está registrada em nome dele, mas ele não tem porte de arma. Vamos autuá-lo em flagrante por porte ilegal de arma.
              Desconfiado da parada e notando que o sotaque do interlocutor não era nordestino, puxei conversa. Indaguei do “tenente”, de qual Polícia Militar ele era. “Da PM de Pernambuco, meu amigo”.
               - Não estou entendendo a necessidade de minha presença aí. Se o senhor achar que deve deter o cidadão, conduza ele para a delegacia competente e lá o delegado manda lavrar o flagrante. Como o crime de porte ilegal de arma é inafiançável, ele vai encaminhá-lo para o Cotel. Pode então contratar um advogado para pedir que o juiz arbitre a fiança, ele paga, é solto e responderá o processo em liberdade.
              - Mas não precisa tudo isso, doutor, ele está com os vinte e cinco mil na mão, paga seus honorários, na hora, e nós liberamos ele. Quer falar com ele?
              - Quero. Alô! Como é seu nome todo?
            Nessas alturas, o cara deve ter passado o fone para o “tenente” e a linha caiu ou desligaram de propósito.
             Vejam que o “tenente“ marcou um encontro na divisa do Estado de Pernambuco com o da Paraíba, sem especificar o local com exatidão. Imediatamente depois de terem desligado o telefone, tentei contactar o celular de onde partira a ligação, mas só dava fora de área.
           Após o ocorrido, quis interpretar ou “descobrir” o porquê de terem me escolhido para personagem dessa história. E me lembrei que brilhante Juíza de uma das Varas de Família do Recife, cujo primeiro nome é Paula Teixeira, me disse certa vez que nas ações de divórcio e alimentos dos ricos e famosos, ela se baseia quase sempre nas colunas sociais da imprensa pernambucana. No dia desse telefonema, saiu a foto de um cidadão com sua esposa, no Caderno C, do JC, na prestigiada coluna de Roberta Jungmann, ambos charmosos e com pinta de milionários. Talvez o “tenente” tenha me confundido com esse cidadão.
 
*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Recifense de Letras.

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O TELEFONEMA

Publicado no JC em 30/03/11

Estou no escritório, entre seis e seis e meia da noite, bate o telefone:

- Arthur, vou me suicidar, dentro de 40 minutos.

Embora a pessoa estivesse com a voz engrolada,
reconheci logo o sotaque.

- Você está onde?

- No Casarão da Ribeira.

 Era um bar que ficava na Cidade Alta de Olinda, perto do Mercado da Ribeira, defronte de uma pensão de freiras idosas.  Tinha uma vista bonita do Recife e um bom caldinho de feijão. Adão Pinheiro de vez em quando pintava por lá. Falar nisso, por onde anda Adão Pinheiro? No Congo, em Tanganica, no Japão ou Calcutá?

- Me espere que estou saindo daqui, agora, pra me encontrar com você – disse ao pretenso suicida.

E me piquei do Edifício Solimões, onde trabalhava, pro Casarão. Na época, eu morava no Alto da Sé, o que facilitava minha ingrata missão.  Na viagem do Recife pro bar, ia imaginando qual ou quais seriam as causas daquele iminente suicídio. Conhecia o moço muito bem, ótimo rapaz, inteligente, sensível e complicado, a vida toda pela frente.

Chegando no Casarão, encontrei-o tomando cerveja e fumando. Pedi um drinque para acompanhá-lo e puxei conversa. Perguntei se nosso amigo Renato Carneiro Campos estava sabendo de suas intenções. Renato gostava dele. Dada a grande diferença de idade de um para o outro (Renato mais velho e chapa de seu pai, já falecido), ele disse que não. Não queria incomodá-lo e tinha medo de levar um esporro.

- Se você vai se suicidar, por que o medo do esporro?

Ele riu. Um riso amargo. Como de costume, Renato tratava os novos com brincadeiras e deboches carinhosos, sua forma dissimulada de externar amizade e apreço. Ameacei chamar Renato, ele entrou em pânico. Naquele tempo não havia celular. Tentei o telefone fixo, Pompeia disse que Renato estava no Savoy, com Jefferson Ferreira Lima e o poeta Garibaldi Otávio. Agora, que comemoramos os oitenta anos de nascimento de Renato, e por questão de justiça, não podemos deixar de lembrar sua viúva, Pompeia, mulher de classe e extraordinária, em plena atividade profissional.

Telefonei pro Savoy, ouvi barulho de copos, pratos, vozes e talheres, Renato já havia saído, e, não sei como, Thomás Seixas veio atender. Contei o que estava acontecendo e pedi sua ajuda. ”Vou já aí com um conto de Juan Ramon Rimenez”- disse ele.  “Mas meu amigo não está em condições de ler ninguém, agora, e você ainda vai demorar, comprando esse livro”. - Protestei.

Achei que o único meio de evitar aquele suicídio, no momento, seria tentando embriagá-lo e danei- me a pedir uísque. Calculo que quando cheguei no bar ele já havia tomado muita caipirinha. No terceiro uísque, apagou. Chamei sua namorada, embarcamos com ele num táxi, fizeram as pazes no outro dia, e ele hoje é um empresário realizado, sem deixar de ser boêmio.

02. Email de Fernando Monteiro. “Arthur: obrigado pelas agradáveis horas desta quinta-feira (de homenagem ao sólido pensamento do orteguiano Nelson Saldanha) de conversa irredutível aos ‘convencionais’ como Carlos Drummond de Andrade e aos ‘medrosos’ como João Cabral de Melo Neto - ambos grandes poetas. Grande abraço”.

P.S.: Amanhã, 31, lançamento do ensaio filosófico Existe Deus? do jornalista e escritor Hugo Vaz, no Barcelos Bar, Clube Português, a partir das 18 horas.

*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Federação Internacional dos Jornalistas.


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A VOLTA DA MARCHINHA




Publicado no JC em 23/03/11





   Sou do tempo da marchinha. O que animava o Carnaval do Rio e da Bahia era a marchinha. A primeira foi Ô abre alas (1901), de Chiquinha Gonzaga. Depois, vieram centenas, encarrilhadas, não dá nem para enumerar. Umas, maravilhosas, pelo sutil sentido duplo: “Que me importa que a mula manque, o que eu quero é rosetar”; “O que é que há com a sua baratinha, que não quer funcionar?/ bota esse motor em movimento, filhinha, e vamos passear!”; “Me dá um lenço, Mandarim, bote um pouquinho desse cheirinho pra mim/ bote, bote, bote mais um bocadinho/ com esse cheiro eu vou pro céu devagarinho”...

   No Recife, a marcinha e o frevo enchiam os salões. Os sambas serviam para cadenciar a dança dos foliões, dando uma pausa pro descanso. A maior parte das marchinhas e dos sambas era de compositores cariocas; os frevos, de pernambucanos. O chamado Carnaval de rua de Salvador e do Recife nunca desapareceram, apenas mudaram de modalidade. Tanto em Salvador, quanto no Recife, o que desapareceu mesmo foram os corsos, de carros conversíveis (de capota arreada), com moças e rapazes “da sociedade” fantasiados, serpentinas, confetes e lança-perfume. Isso, ao cair da tarde, pelas principais ruas e avenidas da cidade. Depois, banho, jantar e baile nos principais clubes sociais, incluindo-se os clubes populares. Mas o Carnaval de rua sobreviveu sem os corsos e pequenas troças. Em Salvador, os trios-elétricos, com cantoras exuberantes, animam e puxam multidões pelas ruas, e no Recife e Olinda, cordões, blocos e clubes desfilam sua alegria, ritmos e picardia pelos bairros e subúrbios.

   Todo esse papo furado, toda essa conversa mole é pra dizer que a marchinha de Carnaval voltou triunfante, e, tudo indica, pra ficar. Quem resiste à freudiana “Mamãe, eu quero, mamãe, eu quero, mamãe, eu quero mamar”, do genial humorista pernambucano Jararaca? Quem não sabe “Gafanhoto deu na minha roça/, comeu, comeu/ toda minha plantação.”? Quem esquece “Chiquita Bacana, lá da Martinica, se veste com uma casca de banana nanica”? “Taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim”? Meu pai cantava tanto isso...

   Dizia-se que as escolas de samba acabaram com o Carnaval do Rio, mantendo os espectadores sentados nas arquibancadas, e era verdade. De repente, blocos como a Banda de Ipanema, o tradicional Bola Preta e muitos outros foram crescendo(ou inchando?) e se multiplicando, e hoje o Carnaval de rua do Rio ressurgiu em seu esplendor, arregimentando tantos foliões que a imprensa carioca já pergunta se não está havendo um exagero de agremiações, que, em grande número, passaram a tumultuar o trânsito da cidade, antes e durante o Carnaval. Tudo embalado pelas picantes marchinhas.

   Não sou sociólogo para interpretar o fenômeno com exatidão. Talvez a melhoria da renda do carioca esteja contribuindo pra isso, e o folião queria aproveitar a maré para soltar a franga, agradecendo o tempo de liberdade e democracia que atravessa, torcendo que seja para sempre. De uma coisa tenham certeza: pelo menos 90% do ressurgimento do Carnaval de rua do Rio de Janeiro devem-se à volta das antigas marchinhas. Nossos agradecimentos, portanto, ao saudoso e esquecido Freire Júnior, um dos seus criadores.

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.





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PENA DE MORTE



Publicado no JC em 16/03/11

Se lhe perguntarem, leitor amigo, se tem pena de morte no Brasil, você certamente responderá que não.  Mas tem. Tem a pior forma de pena de morte que se possa imaginar. Aquela que dispensa julgamento, juiz e jurado, perícia, testemunhas de acusação e de defesa, promotoria, escrivão, serventuários públicos, inquérito, investigação policial, prisão em flagrante e processo.
O cidadão acorda, faz a barba, toma banho, toma café, veste-se, pega o ônibus ou o carro e vai trabalhar para ganhar o sustento honestamente, pagar o colégio ou a faculdade de seus filhos, o plano de saúde etc.  
Desce na primeira esquina de rua movimentada, no centro da cidade, e é abordado por dois ou três indivíduos de revólver em punho, para roubarem o seu relógio, seu talão de cheque, seus cartões de crédito, infernizar sua existência.  O cidadão, chocado e em pânico, levanta as mãos, rendendo-se, humilhado, constrangido e desmoralizado, como se estivesse num campo de batalha da Segunda Guerra Mundial ou do Vietnã.  Mas não.  O cidadão, pacato e cumpridor de suas obrigações, não conhece os assaltantes e nunca lhes fez mal.  Seu destino e sua vida estão à mercê dos bandidos que assim agem drogados ou lúcidos.  Se por acaso temerário, o cidadão meter a mão no bolso para retirar o dinheiro e entregar ao meliante, este poderá desconfiar que ele está puxando uma arma.  E aí dá-se o direito de atirar nele.  Há casos também em que o ladrão leva todos os pertences do cidadão e ainda o mata ou fere por pura perversidade.  E relatos em que o sequestrador recebe a “indenização” da família do sequestrado, para devolvê-lo, mas o elimina, alegando que assim fez para não ser reconhecido pela vítima.  Isso é o suprassumo do mau-caratismo, da covardia e da maldade. O importante é constatarmos que em qualquer dessas situações houve uma espécie de pena de morte branca em que o cidadão foi assassinado friamente, sem julgamento, por motivo torpe. 
Registre-se, somente para argumentar, que, nos Estados Unidos, onde vigora a pena capital, o réu tem direito a recorrer da decisão condenatória de primeiro grau, a todas as instâncias superiores, numa procrastinação processual, facultando-lhe a mais ampla defesa, que poderá durar anos.  E neste país abençoado por Deus, o marginal mata qualquer um, em frações de segundos, bastando, para tanto, num diabólico acesso de prepotência e crueldade, apertar o gatilho de sua pistola.  Às vezes quem atirou não tinha o intuito de fazê-lo, mas foi incentivado pelo comparsa:  “Atira nele, atira nele...”  Mesmo porque, nos morros, palafitas e favelas, quanto mais mortes o malandro tiver, maior o seu prestígio, entre os moradores, e o cartaz, entre as mulheres.  Nos presídios e penitenciárias, a mesma coisa. O criminoso comum, principalmente o gatuno, é execrado pelos presos; o matador é respeitado e acatado. No submundo do crime, no Brasil, matar dá status.  E nós somos o sexto país do universo em número de homicídios. 
P.S.: O Juvenil do Sport, campeão invicto de 54 e 55, de luto com o falecimento de seu vigoroso beque direito Nei Pavão. Ele formou um trio final famoso: Manga, Nei e Odilon Maroja. Era um líder nato e promovia todos os anos o almoço de confraternização dos campeões.
*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Pernambucana de Letras Jurídicas.      


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UMA PEDRA NO (NOSSO) CAMINHO







Publicado no JC em 02/03/11


 

   Thomás Seixas costumava dizer, lá pelos anos 50 e 60, em tom de blague, que “A ruim poesia de Drummond é responsável pela péssima que anda por aí”.


   Engraçado: Jamais gostei da poesia do celebrado vate mineiro e sempre o achei um chato de galocha. Aquela figurinha difícil, taciturna e sorumbática de intelectual bem-comportado, encastelado e livresco, enclausurado em torre de marfim, que, apesar de se dizer comunista, serviu à ditadura Vargas, como chefe de gabinete de Gustavo Capanema, então Ministro da Educação, nunca me entrou. Agora vem a Veja de 9 de fevereiro, publicando suas cartas antigas ao confidente e conterrâneo Cyro dos Anjos, queixando-se de que enquanto a imprensa do Sul “baba de entusiasmo causado por qualquer produto literário do Nordeste, guarda o mais absoluto silêncio envolvendo uma obra do quilate do Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles.” E uma dessas cartas acrescenta que a peça Lampião, de Rachel de Queiroz, “embora destituída de interesse psicológico”, se destacava pela “linguagem saborosa”, enquanto o romance Cangaceiros, de José Lins do Rêgo, só teria a habilidade “de descobrir alguns novos palavrões”.


   Nessa correspondência para Cyro dos Anjos, Drummond revela despeito ou preconceito ao generalizar seus ataques aos “rapazes do Norte”: “Como escrevem mal” – avalia. Nem tanto, meu caro Carlos. Numa lista hipotética dos dez melhores romances brasileiros, devem figurar, pelo menos, quatro nordestinos: Vidas Secas, Terras do Sem Fim, Fogo Morto e O Quinze. O Quinze, de Rachel, e Fogo Morto, de Zé Lins, dois dos romancistas criticados por você. Interessante: você poupou Jorge Amado, José Américo de Almeida, Graciliano Ramos e João Cabral. Ou estes não são do Norte? Não precisa ser um Flaubert para contar as tragédias, os dramas, as sagas e o lirismo da terra natal. Basta fazê-lo com coração e dignidade. “O estilo é o homem”. E o nordestino não nasceu em Minas, nem em Paris. Em artigo recente publicado no Jornal Rascunho, Luiz Bras diz que nem sempre os grandes escritores são bons escritores. E garante que “Textos desleixados, apresentados longe dos padrões gramaticais, podem se transformar em obras-primas”. Observação sutil e verdadeira, que poderia se aplicar a Zé Lins, por exemplo. Certos filólogos chegam a apontar erros de concordância, de tempo de verbo e de português em seus livros o que não diminui o valor de sua obra, nuance não observada por Drummond, por ignorância ou má-fé.


   Drummond demonstrou desconhecer três excelentes escritores nordestinos: o pernambucano de Garanhuns Luiz Jardim, do intrigante Confissões do Meu Tio Gonzaga, romance cujo fragmento consta da coletânea O Recife dos Romancistas, de Abdias Moura, o baiano Sosígenes Costa, construtor do poema mítico O Papiro Dourado, e o alagoano Jorge de Lima - seu épico Invenção de Orfeu vale por tudo que Drummond escreveu. O nosso itabirense “esqueceu” também do recifense Joaquim Cardozo. O belo Congresso dos Ventos supera em qualidade literária e musicalidade qualquer peça por ele, Drummond, produzida. Drummond ganha da obra completa (poesia e prosa) de Manuel Bandeira?


    Estou comparando seu trabalho com a dos seus contemporâneos nordestinos. Se o leitor me permitir recuar no tempo e ombreá-lo com bardos brasileiros de séculos passados (o que seria complicado), se isso fosse possível e somente para argumentar, pergunto se aos 22 anos ele já havia escrito alguma coisa da magnitude e genialidade de Navio Negreiro. Se ele morresse na flor da idade, teria deixado o que Álvares de Azevedo, Fagundes Varela e Castro Alves, mortos precocemente, deixaram?


    Quando jovem, li Fala, Amendoeira, crônicas de sua lavra. Nele, a criatura consegue ser mais insípida do que o criador. Sabe aquilo pesado, ronceiro, sem alma, sem molho, sem jogo de cintura? Não vale uma página – uma só - de Rubem Braga, Renato Carneiro Campos, Luís Aiala e Andrade Lima Filho, para citar apenas os que partiram. Sim, o estilo é o homem, talvez por isso, O Estado de São Paulo tenha cortado suas crônicas semanais naquele matutino, certa época, por falta de leitores. Pena, porque, segundo seus admiradores, ele escrevia tão bem...


   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro.



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UMA PROPOSTA INDECENTE

 Publicado no JC em 23/02/11

Encontro Tancredo Loyo Borba, Antônio Porfírio da Silva (competente e esforçado advogado da AGU) e Reinaldo Belo, na Avenida Conde da Boa Vista, e todos são unânimes: “Gosto quando você escreve sobre o cotidiano.”  Muito bem.  Então, vamos lá.
O vidro da porta do motorista de nosso carro não descia.  Como vocês sabem, o engenho é automático.  Aconselhado por filhos, noras, genros, amigos, gregos e troianos, levei o carro para uma revendedora “autorizada”, na Imbiribeira.  A Imbiribeira é território estranho para mim.  Quando cheguei ao Recife, o bairro era um manguezal só, de um lado e do outro da Mascarenhas de Morais.  Corria até uma história deliciosa de que ali, na Lagoa do Araçá, tinha tubarão.
Depois de muito procurar, cascavilhar e indagar, de oficina em oficina, achei a “autorizada”.  Um galpão enorme, ocupando quase um quarteirão inteiro, superlotada de veículos de todas as marcas, cores, tamanhos e ano de fabricação. É verdade que atrás da chique “autorizada” jaz uma favela miserável e fedorenta, mas isso é problema pra comunista.  Fui atendido por um rapaz bem educado, que manejou o vidro e deu logo o parecer:  “A película está dificultando o vidro correr na calha.  A solução é mudar a película.” “Quanto custa o serviço, incluindo a mão-de-obra?”  “Quatrocentos e cinqüenta reais.”  E como me viu calado e cabisbaixo, sem poder ler meu pensamento e descobrir minha perplexidade, completou a informação com singela sugestão: “Doutor, estou vendo que não temos película dessa cor sua, por que o senhor não aproveita e troca as películas das quatro portas, para ficar uma coisa padronizada?” Fingindo dúvida quanto ao fechamento da proposta indecente, indaguei quanto custaria tudo.  Ele pegou a maquininha (hoje não se soma 2 + 2 sem a maquininha de calcular) e respondeu candidamente: “Apenas mil e oitocentos reais.”
Agradeci ao atencioso moço e aterrissei numa “equipadora” da Madalena, onde o funcionário informou que também não tinha “minha” película fumê e recomendou outra “equipadora” na Avenida Caxangá, defronte da Exposição de Animais.  Chegando lá, o próprio dono da loja veio me atender, expliquei o defeito, ele chamou o mecânico, pediu um spray, aplicou na calha do vidro, manobrando-o pra baixo, pra cima, o vidro desceu e subiu, ele mandou o mecânico botar o spray nas outras portas, elas funcionaram bem, perguntei quanto era o serviço, o homem respondeu: “Nada”.
Não conformado, agradeci, mas disse-lhe que o havia procurado com um problema, ele resolvera o problema, portanto eu queria pagar o conserto.  E ele: “O serviço não é nada.  Se o senhor quiser comprar o spray, é vinte reais”.
Comprei o spray, dei um agrado ao mecânico, peguei a maquininha de calcular (e carecia?), fiz as contas: um mil e oitocentos reais de orçamento, na “autorizada”, menos vinte reais da “equipadora”, da Caxangá, um mil setecentos e oitenta reais de economia.  É mole? 
P.S.: Recomendo, com entusiasmo, “Salve a Nau Catarineta”, opera popular de Vicente Monteiro, baseada na obra de Altimar Pimentel, dias 26 e 27 próximos, às 16h., no Teatro Apolo, apresentação Funcultura, projeto do Integrarte.    
*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Recife de Letras.         
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SOLUÇÃO PARA O SPORT

Publicado no JC em 16/02/11


Peço licença a Ivanildo Sampaio para reproduzir conversa que tive com amigo do Rio de Janeiro cujo nome, dadas as circunstâncias e o assunto, prefiro manter em anonimato.  E quero publicar esse e-mail por achar de grande valia e contribuição para a diretoria do Sport se orientar melhor, tentando salvar o Leão ainda este ano.

Pergunto ao amigo carioca e profundo conhecedor de futebol e corrida de cavalo, além de excelente escritor, com vários livros publicados, e experiente homem de sociedade, se ele assistiu pela TV ao jogo Sport 2 x 1 Vitória de Santo Antão, quando o segundo gol rubro-negro foi feito aos quarenta e cinco do segundo tempo pelo goleiro - reserva de Magrão.  Resposta: “Não vi, mas li. Doideira. Há algo no ar que não apenas os aviões de carreira.”

E prossegue:

“Geninho não é burro (limitado, mas não burro). Pode procurar em outros lugares, que você acha (tipo preparação física deficiente + disciplina solta + ‘turma do chinelinho’ etc. etc... Ou, claro, gigantescas limitações técnicas dos caras e aí, é ter contratado mal. Nesse caso, nada a fazer.

O Vasco também está em dia e ainda não marcou ponto. Jogou 4, perdeu 4! No caso do Vasco, é limitação técnica mesmo + uma fantástica esculhambação em matéria de padrão de jogo (o tradicional ‘bando’). Ninguém marca ninguém, o meio campo bate cabeça com cabeça, o ataque chuta (quando chuta) na arquibancada. O Thiago Neves só não entrou com bola e tudo, no domingo, porque não quis (fui rever o gol na INTERNET e os 3 beques estavam a nunca menos de 15 metros dele...). Assim, até eu faço.

Sugestão: a de sempre. Ou o Sport arranja um Mecenas tipo UNIMED - com a torcida do Sport, isso não é tão difícil assim -, ou não voltará à 1ª Divisão este ano. Estou convencido: sem grana, não dá mais pé. Pode até arranjar um time de garotos ótimos! Começa a ganhar, mas não dura 3 meses. Moçada de fora vem, leva os melhores e desmonta tudo!

Então, só batendo papo com a Traffic.
A entrevista do dono dela (o Júlio Avelar) no Globo de domingo passado, 2 páginas, sob o título ‘Preto no Branco’ é altamente ilustrativa! Tem que haver um parceiro forte por trás do Sport, interessado nele, e um plano global  onde o clube quer chegar.
A Traffic vai ganhar dinheiro? Claro! Mas vai colocar no clube os jogadores que podem viabilizar o tal plano. Hoje ela é a dona do Flamengo, do Palmeiras e de parte do Fluminense (principalmente da garotada de Xerém). Sim, e daí? Daí que o clube é campeão brasileiro depois de 26 anos na lista de espera...
A Traffic fica em São Paulo. Mas o Júlio é carioca e tricolor doente! Ele e a família toda. Não fosse ela e a UNIMED, o Conca não estaria lá pelos próximos 3 anos. Nem Fred nem metade do time etc. etc. etc. Se a UNIMED ‘encaixar’ - é a nova linguagem dos professores - não tem pra ninguém...
No momento, o Fluminense tem 2 bancos para cada titular. No meio campo tem 3! Valência, Diogo, Deco, Fernando Bob, Conca etc. etc. Chega? Dá para jogar 10 campeonatos ao mesmo tempo. A moçada enlouqueceu de vez. O futebol do Rio paga mais que o da Inglaterra... O jogo de estreia do Ronaldinho contra o Nova Iguaçu rendeu ao Flamengo 1 milhão + a bilheteria!
 Proposta: diz ao presidente daí para pedir emprestado o 3º time da UNIMED por 3 meses. É hexa sem a menor dúvida! E eles emprestam, porque não sabem o que vão fazer com os caras. Problema é pagar os salários que eles ganham pra ser banco...”
Concordo em gênero, número e grau com as opiniões de meu amigo, que, tenho certeza, são construtivas e de boa fé.
Como diria Ancelmo Gois: “Faz sentido.”    
  *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Federação Internacional dos Jornalistas. 



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ONDE CANTARÁ O SABIÁ?



Publicado no JC em 09/02/11 





   Vou dirigindo o carro pelo pátio da Santa Cruz, surge um rapaz de bicicleta, daquelas de bagageiro com cano de ferro, pela contramão, e bate na minha dianteira direita. Parei, mas não desci, evitando perder tempo e uma peixeirada. Primeiro, o ciclista teria que reconhecer a culpa da manobra, o que dificilmente acontece em “acidentes de trânsito”. Segundo, mesmo que reconhecesse, alegaria não ter como pagar o conserto. Um amigo me contou que uma Kombi velha, caindo aos pedaços, entrou na traseira de seu automóvel novo em folha. E o motorista da Kombi: “Não tenho dinheiro para lhe pagar. Se quiser ficar com a Kombi, como pagamento, pode ficar.” Meu amigo levou o carro para a oficina, teve seu veículo desvalorizado pelo amasso, para sempre, e ficou por isso.



   As manobras arriscadas e atrabiliárias de ciclistas, motoqueiros, cinquentinhas e carroceiros têm transformado o caótico trânsito do Grande Recife num inferno. Onde estão os diligentes fiscais do DETRAN, sempre ávidos para multar os motoristas, na maioria das vezes tratando-os mal e sem educação? Onde estão esses cidadãos, repita-se, que não aparecem, das cinco da tarde às sete da noite, para prender em flagrante delito os ciclistas e motoqueiros que trafegam nesse horário de rush, sobre as calçadas, principalmente da calçada, repita-se, do Hospital Santa Joana, até a ponte da Capunga, em constantes ameaças à integridade física e à vida dos pedestres?



   O problema é cultural mesmo. No Recife, ninguém cede passagem aos veículos portadores de sirene, sejam de ambulância ou militares. Continuam a dirigir os carros de luxo ou calhambeques falando em celulares. Os cafajestes buzinam, a qualquer hora do dia ou da noite, em frente a hospitais, e passam em alta velocidade defronte das escolas. Esses têm seu comportamento justificado, coitados, por terem pressa de tirar suas genitoras da zona.



   Há também os que chegam das farras, de madrugada, nos prédios onde moram, bêbados ou drogados, e buzinam para acordar o vigia que demora a abrir o portão da garagem. Não esquecer os boys e boyzinhas egressos das baladas, que amanhecem no Mercado da Madalena, trajando roupas pretas, e ligam o som no volume mais alto, na mala do carro, para desespero da vizinhança.



    Nem tudo está perdido. Deixo o carro para reparos numa oficina da Madalena e caminho a pé para a Avenida Beira-Rio pela Rua Hermógenes de Morais. De repente, ouço o canto de um sabiá-gongá, vindo do jardim de uma casa simpática e arborizada. Não mora ninguém na casa e paro para ouvir, por instantes o canto do sabiá, que parece o som de uma flauta. Na rua ainda restam quatro casas residenciais, sendo duas delas bonitas e arejadas. O resto são edifícios de concreto. Ao andar por essa rua, fico pensando até quando as amplas e agradáveis residências, com varanda e quintal, resistirão à sanha e cobiça implacável das imobiliárias, elevando gradativamente a temperatura da cidade.



    O saudoso escritor Renato Carneiro Campos ensinava que o cronista não deve ter receio do ridículo. É o que faço aqui e agora falando de sabiá, flores, árvores, jardins e quintais numa Recife cada vez mais desumana, pragmática e poluída.



    P.S.: Excelente a história A Revolução dos Personagens, de Edvaldo Arlégo, Edições Edificantes.



*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.



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MUDANDO DE ASSUNTO



Publicado no JC em 02/02/11


   Benito di Paula, também conhecido como passarinho de bigode, diz que acaba a valentia de um homem quando a mulher que ele ama vai embora. E acrescenta que tanta coisa muda nessa hora, que o mais valente dos homens chora.

   Pior, que é verdade. Dizem que Maria Bonita mandava em Lampião. Chegou a poupar a vida de prisioneiros e sequestrados do Rei do Cangaço, pedindo por eles. Aníbal, o grande general cartaginês, dizia que, se lhe dessem um exército de apaixonados, ele conquistaria o mundo. Cientistas ingleses diagnosticaram há algum tempo que, quando o homem ou a mulher se apaixonam, ficam doentes. Ou seja, a paixão é uma forma de doença. Mas, às vezes, a paixão é uma sensação gostosa. Nas noites de solidão, Manuel Bandeira costumava telefonar para os íntimos, perguntando se o amigo tinha uma dorzinha de cotovelo para lhe vender.

   Conheci um boêmio, casado e pai de família, cuja amante era dona de pensão. Conversando com ela, um dia, a pobre desabafou, dizendo que não aguentava mais tanta exploração. Que, além de beber e comer de graça na sua casa, ele levava os amigos para fazer farra em sua boate, sem pagar. Danado eram as feijoadas dos domingos, que começavam onze horas e varavam a noite, entrando pela madrugada das segundas-feiras, tudo safo.

   Indaguei por que não se separava dele. “Porque não consigo. Já fui até aos mais famosos candomblés da Bahia. Gastei fortunas com pais-de-santo de lá e daqui, e nada. Esse homem me enfeitiçou, estou cega. Não quero vê-lo. Se aparece, me rendo. Nem sabe que pretendo deixá-lo. Ele é o homem da minha vida. Uma maldição, um castigo. É casado, mas, e daí?” Isso dito por uma dona da noite, coroa de muitos quilômetros rodados.

   Lupicínio Rodrigues, o rei da dor de cotovelo, andou próximo de definir a desilusão de uma paixão traída ou não correspondida: “Eu não sei se o que trago no peito é ciúme, despeito, amizade ou horror. Eu só sinto é que quando a vejo me dá um desejo de morte ou de dor.”

   Eu estava conversando fiado com uma promotora de Justiça e uma juíza da vara de família do Recife, quando me veio à mente esse tal verso de Benito di Paula - acaba a valentia de um homem quando a mulher que ele ama vai embora. E chutei que nem Shakespeare fez verso tão pungente e original. Tanto bastou para a promotora, Luciana, filha de meu saudoso colega de turma do Nóbrega, Olympio Costa Júnior, pular da cadeira: “Não diga isso. Não diminua meu Shakespearezinho.” E exibiu, vaidosa, um livro do inglês, que está lendo, sobre sua mesa de trabalho. Mas Andrea, filha de meu amigo Aluiz Tenório, de brincadeira ou não, me deu razão: “Também acho.”

   E agora?

   Agora é que, um dia, perguntei ao poeta Thomas Seixas, versado nos clássicos greco-romanos e da literatura inglesa, francesa, russa, italiana, espanhola, portuguesa e brasileira, o que entendia por dor de amor, tendo ele respondido: “Me pergunte tudo, menos isso. Esse capítulo é o mais misterioso e indevassável da alma humana, onde até rei volta a palavra atrás. Eu mesmo – murmurou ele em sofrida confissão – somente amei na vida uma vez.” E mudou imediatamente de assunto, os olhos marejados, indo colher acácias amarelas e rosas brancas do seu jardim das Graças.

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista é do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro.



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O VELHO PAIVA

Publicado no JC em 26/01/11

Gilberto Ferreira Paiva (20/08/1917-30/12/2010), o Capitão Paiva ou Velho Paiva, era um homem simples, bom e jovial, avesso a bizarrear façanhas. Respeitosa e carinhosamente tratado por seus colegas da Aeronáutica, foi um dos militares mais dignos, educados, corajosos e elegantes que conheci. Ex-combatente, em aviões modelo caça no Segundo Conflito Mundial, foi herói de guerra e contava, com orgulho, episódios relevantes de sua experiência na FAB, nos campos de batalha da Itália.

Modesto, não se autoproclamava herói, preferindo ser ex-combatente. O Capitão Paiva não foi convocado para a guerra, alistou-se como voluntário, o que é diferente. Enquanto muitos usavam o tráfico de influência para escapar da convocação e outros desertavam, ele topou a parada. E dizia que passou por momentos de angústia e perspectiva até ser chamado a integrar o 1º Grupo de Caça Brasileiro. Isso demonstra caráter, disposição e vontade de servir no nosso corpo expedicionário na Europa.

Não satisfeito com o que aprendeu em sua fecunda existência de conhecedor de países e da história do Brasil, formou-se em Sociologia, Filosofia e Direito, e passou a lecionar em faculdades. Deixou o livro Lembranças e Relatos de um Veterano do 1º Grupo de Caça, documentado, narrando casos pitorescos e dramáticos de sua atuação na aviação, enfrentando as tropas marítimas, terrestres e aéreas do Eixo.

Foi agraciado com várias medalhas, inclusive a Medalha “Citação Presidencial de Unidade”, outorgada pelo Governo Americano, e a Medalha da Ordem do Mérito Aeronáutico. Foi admitido no Corpo de Graduados Efetivos no Grau de Cavaleiro da mesma ordem. Em missão de guerra esteve nos Estados Unidos, nas três Guianas, na África Ocidental Francesa, Dakar, Portugal, França e Egito.

Humano e sensível, o Velho Paiva atendia, com prazer, aos pedidos dos amigos. Dessas pessoas que nasceram para praticar o bem. De vez em quando aparecia no nosso escritório, para tomar cafezinho e conversar, trazendo sempre uma lembrança, de preferência livro e uísque escocês. Aí, telefonávamos para o Brigadeiro Márcio Calafange, meu ex-colega de turma do Colégio Santo Antônio dos Irmãos Maristas de Natal. “Adivinhe quem está aqui?”, perguntava eu a Márcio. E Márcio: “Já sei, é o Velho Paiva.” Nessas horas o papo rolava pelo telefone interurbano, porque Calafange, boêmio de classe, mora no Rio.

O Capitão Paiva partiu no dia 30 de dezembro de 2010, aos 93 anos, deixando viúva Maria Carmem, três filhos, netos e vasto círculo de amizade.

Saudades, Velho Paiva. Fique com Deus.

*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da ABI- Associação Brasileira de Imprensa.



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CONVERSA COM BATATINHA







Publicado no JC em 19/01/11




 
Fui ao enterro de um amigo no Parque das Flores recentemente. Aproveitei para visitar o túmulo de meus pais e de meu irmão Carlos Aloysio, e não gostei do que vi. Ele está abandonado e feio. Contrato o coveiro Batatinha para fazer um canteiro com grama boa e plantar flores no local. Batatinha vai regar a grama e as flores e catar o mato. Como tinha muita saúva, acho melhor substituir as flores naturais por artificiais.



No dia 2 de janeiro, voltei àquela – como direi? – necrópole, para conferir se Batatinha havia concluído o serviço. Travou-se então o seguinte diálogo entre nós:



- Aqui não falta freguês, não é Batatinha?



- É, doutor. Ontem mesmo chegaram oito.



- Por que tantos?



- Todo fim de ano é assim, a turma “entornam” mais na véspera e embarcam mais cedo.



Me lembrei de Roberto Motta. Ele disse que a construção clássica seria essa mesma: “A turma entornam”. Indo a concordância pro plural. E Manuel Bandeira: “A língua errada do povo. A língua certa do povo”.



- Pior é no Carnaval, doutor – prossegue Batatinha – a clientela aumenta com a extravagância dos foliões. Além de cana, confusão. Mas aqui é cemitério de grãfino. Pobre é que enterra muita gente no Carnaval, porque rico toma uísque ou vinho, bebidas caras, não quer escândalo e aguenta melhor a gaia, e o lascado vai é na cachaça e se vinga do chifre na peixeirada e na foice. O senhor já viu briga de barão em delegacia de polícia?



- É verdade. Mas cuide direitinho desse jazigo, Batatinha, porque, breve, talvez eu venha morar aqui, fazendo companhia aos meus pais e meu irmão. Eu queria ir pro mausoléu da AIP, mas parece que não tem vaga.



- Onde é isso, doutor?



- No Santo Amaro. Se eu vier praqui, não quero choro nem vela, fique sabendo. Vou querer um conjunto de samba, animando o velório, com um time bom no violão e no cavaquinho. Não confundir com pagode nem axé.



A essas alturas, Batatinha olha um tanto assustado pra mim:



- Me desculpe, doutor, mas nunca ouvi uma conversa dessa. Acho uma boa ideia, porque o pessoal só vem acompanhar defunto soluçando e gritando. Uns gritos histéricos. Tenho visto tumulto, também. O corpo ainda não esfriou e a família já está cobiçando a herança. Isso faz mal ao falecido. São fluidos ruins. Uma energia pesada. Eles deviam respeitar os mortos.



- Você já dormiu alguma vez sozinho, aqui, Batatinha?



- Não, doutor, porque o movimento não para. Já varei muita madrugada em claro, mas dormir, não. Se tiver de dormir, durmo sem medo, porque os que moram aqui não bolem com ninguém. Aqui só fica a matéria, o espírito está vagando por aí...



- Aí, onde?



- Não sei. Ainda não voltou ninguém pra dizer como é o lado de lá. Sei que quem praticou o mal na terra vai ter que pagar em outro canto. Cada religião diz uma coisa.



Regressarei ao Parque das Flores dentro de trinta dias para “inspecionar” o local onde estão meus pais e meu irmão. Não custa nada fazer o reconhecimento do terreno antes da partida final, como fazem os jogadores de futebol, levando, de presente, pra Batatinha, um tubo de água que passarinho não bebe. Afinal, ninguém aguenta um trabalho daquele no seco.



*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Associação da Imprensa de Pernambuco-AIP.


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O QUADRO E O LIVRO


Publicado no JC em 12/01/11



Costumo jantar, aos sábados, perto de casa. No restaurante que frequento, uma tela de Cysneiros me chamou a atenção, representando um mocambo de taipa construído numa clareira, cercado de árvores.  Dirá o leitor inteligente e culto ser o tema prosaico e batido, e me lembro de Mauro Mota. Ele me ensinou, certa vez, que não há tema esgotado e que o tema é bom ou não, dependendo da forma como é abordado, expressado, e do talento do criador. A tela sugere que era noite de lua cheia quando foi pintada, porque a parede do seu lado direito é clara e as nuvens brancas e altas refletem luminosidade no teto de palha.  O caminho para se chegar à casa é estreito e de barro, margeado de luxuriante vegetação. 
Apesar de ser noite, não se vê luz acesa em seu interior e, na frente, no pequeno terreiro de massapê, um corte de pano vermelho, um azul e um verde tremulam, ao sabor do vento, presos a um arame estendido entre um varal e outro. 
O que mais me agradou nesse quadro foram o silêncio e a paz que dele emanam, sugerindo a solidão que envolve moradias erguidas em clareiras, no meio do mato, sem vizinhança de espécie alguma.  Fico imaginando que o mocambo cintila, à noite, com trêmulos lampejos de lamparina ou candeeiro a gás, com fogão de lenha, sem água encanada e energia elétrica.  De tanto namorar a tela que me inspira e ajuda a curtir a solidão, terminei por comprá-la, levando-a para nosso apartamento. É ela que embala meu sono e meus sonhos, quando me deito para dormir ou descansar.
Quando saí de Olinda para morar no Recife, faz um tempinho, encaixotei meus livros, trazendo quase todos pra minha nova morada, na Madalena, esperando que o marceneiro fizesse as estantes para acondicioná-los.  Com a demora do marceneiro para aprontar as estantes, o cupim e o mofo estragaram a maioria dos volumes. Viraram pó a coleção de Dostoiéviski, capa dura, cor de vinho, a História do Brasil, de Pedro Calmon, capa dura, verde e amarela, a coleção Prêmio Nobel de Literatura, capa dura, branca, com ilustrações coloridas de famosos pintores, inclusive Picasso, as obras completas de José Lins do Rêgo, em capa dura azul, ilustrada por Santa Rosa, as de Marcel Proust, em capa dura, azul clara, com desenhos de relógios dourados, as de Balzac, na famosa tradução de Paulo Rónai, capa dura, azul, todas essas da Editora José Olympio; as obras completas de Castro Alves, Cruz e Souza, Manuel Bandeira e Eça de Queiroz, em papel-bíblia, da Aguilar, fora títulos de outros autores, inclusive clássicos de consagrados juristas. Joguei o lixo que restava fora e estou refazendo, aos poucos, minha pequena biblioteca. 
Qual não foi minha grata surpresa ao re-encontrar essa semana, são e salvo, em perfeito estado de conservação, numa caixa de madeira, revestida de papel impermeável, o livro de crônicas Além da Epiderme, de Alex, pela Bagaço.  Esse livro, por recordar e registrar passagens da brilhante trajetória do Alex cidadão, jornalista e cronista literário, escrito em estilo elogiado até por Gilberto Freyre, um de seus grandes amigos, é leitura indispensável, inclusive para quem quer seguir carreira na imprensa.
*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Instituto Histórico de Olinda.               


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SELVAGERIA


Publicado no JC em 05/01/11




   A Prefeitura do Recife deu um baculejo na 7 de Setembro, retirando a maioria dos camelôs que infestavam a rua, emporcalhando as calçadas e atravancando o trânsito de veículos e pedestres. Falta sanear o caudaloso esgoto a céu aberto que corre no meio-fio dos passeios.

   Aí, a porca torce o rabo, porque a Prefeitura diz que é problema da Compesa e a Compesa diz que o problema é da Prefeitura. Está fazendo 15 anos, um cliente nosso, auditor da Fazenda Estadual, caiu, à noite, num buraco aberto pela Compesa, na avenida onde ele morava, dirigindo seu carro. Sofreu lesão grave no pé direito, foi atendido na urgência de famoso hospital particular recifense, fizeram uma barbeiragem e ele ficou lesionado para sempre.

    Entramos com ação de indenização por danos materiais e morais contra a Prefeitura do Recife, que quis se isentar de culpa, argumentando que o serviço foi feito pela Compesa, portanto cabia à Compesa “tapar o buraco”, enquanto a Compesa entendia que, embora aberto por ela, Compesa, o buraco devia ter sido fechado pela Prefeitura. Ou seja: o buraco era mais embaixo. E essa pendenga processual, considerada procrastinação e “ilegitimidade de parte”, durou tanto que deu tempo de a vítima se submeter a mais duas infrutíferas e traumatizantes cirurgias: uma em Brasília, outra em São Paulo.

   A quem cabe, portanto, limpar os esgotos que afloram no centro comercial da outrora Veneza Brasileira, exalando aquele odor putrefacto característico dos excrementos animais?

   Percorremos espinhoso caminho, expulsando, parcialmente, os ambulantes da 7 de Setembro. Falta agora os comerciantes da Rua da Imperatriz cumprirem seu dever elementar e cívico de sanear outro tipo de incômodo: as caixas de som das portas das lojas com “locutores” berrando, “atraindo” fregueses. Insuportável poluição sonora, cena deprimente, de mau gosto e grotesca. Se não acabarem com isso, a Imperatriz vai se transformar em chiqueiro. Chiqueiro de pato. Com o calor que está fazendo e a multidão que por ela passa, todos os dias, a Imperatriz é um corredor do inferno. Existe uma lei municipal proibindo essa esculhambação. Cabe aos comerciantes acatá-la. Para o bem da cidade e de todos nós. Questão de educação e sensibilidade. De civilidade. Que saudade da Rua Nova dos anos 50 e 60! A Rua da Imperatriz, verdadeiro mercado persa, está descambando para a selvageria.

   P.S.: Excelente o livro Lira de um grande amor – No liminar do sonho, do poeta Vieira de Mello, orelhas de Djalma Procópio e de Benito Araújo, prefácio de Padre João Machado de Souza. Leitura agradável e prazerosa.

   Muito sentido nos meios artísticos e políticos de Pernambuco o falecimento de Delano, que, além de ótimo pintor, era gente fina. Finíssima.

   Não foi Albert Camus que visitou Joseph Conrad, conforme minha última crônica. Foi André Gide. Obrigado, Fernando Monteiro.

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Associação Brasileira de Imprensa-ABI.



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O DIA DO MARINHEIRO






Publicado no JC em 29/12/10




 


   Permitam-me confessar que sou oficial de Marinha frustrado, oficial da Marinha Mercante frustrado, marinheiro frustrado. A minha patente, portanto, na Marinha, nunca passou de marinheiro de água doce. Isso porque sou homem nascido e criado nas praias, em uma Salvador cercada de mar por quase todos os lados. Por pouco não nascia na Ilha de Itaparica, plantada no Recôncavo Baiano, onde, na ocasião, minha mãe Amália Maria passava temporada por recomendação médica. Meu pai, também baiano, engenheiro civil Carlos Koch de Carvalho, foi presidente da Companhia Bahiana de Navegação, cuja frota de pequenos navios fabricados na Holanda singravam as águas azuis e comumente plácidas da Baía de Todos os Santos, escalando em Amoreira e Itaparica, subindo o Rio Paraguaçu, servindo às cidades ribeirinhas de Maragogipe, São Félix, Cachoeira, terra do civilista Teixeira de Freitas, vizinha de Curralinho, chão do poeta abolicionista Castro Alves. A Companhia Bahiana de Navegação contava também com o João das Botas, destróier transformado em veloz paquete, que descia pelo litoral sul da Bahia, em cabotagem, até Ilhéus.



   Morei, durante minha infância, na Ladeira da Barra, de onde apreciava, deslumbrado, a entrada e saída incessantes de belos transatlânticos: o lendário Conte Grande, irmão gêmeo do Conte Biancamano, o Oceania e o Netúnia, todos italianos; o Almanzorra e o Alcântara, da Mala Real Inglesa; o Uruguay, Brasil e Argentina, que faziam a rota Europa-Buenos Aires; os Itas, os Aras e os navios do Lloyd Brasileiro e Lloyd Nacional.



   Ao apagar das luzes da Segunda Guerra Mundial, assistia, maravilhado, aos caça-minas americanos, brasileiros e britânicos, serpenteando, com agilidade, por entre os cargueiros de comboios aliados que iam abastecer em Salvador para atravessarem o Atlântico com destino ao Continente africano. Vi até o famoso Queen Mary, de oitenta mil toneladas, conduzindo soldados escoceses, irlandeses e australianos para as frentes de batalha na Europa. No quebra-mar, o encouraçado Minas Gerais, protegido por uma rede de aço, guarnecia Salvador.



   Estudante de Direito, saía de saveiro com os pescadores do Porto da Barra (onde parte da esquadra de D. João VI, pisou solo brasileiro pela primeira vez), para pescar em Amaralina e Itapuã. E quando vim morar em Olinda, costumava pescar, de jangada, ao largo do Janga, Pau Amarelo e Conceição. O mar - principalmente suas cores de um azul subitamente verde, como dizia Jorge Amado e pintava o marujo Pancetti em seus quadros sempre com motivos marinhos – e o silêncio profundo que nos enlevam e acalmam quando estamos pescando “lá dentro”, me fascinam. E se ainda não tive o prazer de passear nos luxuosos e modernos transatlânticos que percorrem o mundo em todas as direções, posso fazer “inveja”, no bom sentido, aos leitores, dizendo que viajei nos paquetes Itapagé e Araraquara, na primeira metade da década de 40, pouco antes de seus covardes torpedeamentos por submarinos alemães; no belo transatlântico português Vera Cruz, irmão do Santa Maria, no Rosa da Fonseca, no Ana Nery, no Pacífic e no D. Pedro II, do qual desembarquei, para aqui morar e me tornar cidadão honorário de Olinda, Recife e Pernambuco com muita honra.



   O escritor polonês Joseph Conrad, autor do clássico Lord Jim, comandante de veleiros que navegavam pelas ilhas dos Mares do Sul, no final do Século XIX, recebeu, certa vez, o romancista francês Albert Camus em sua casa de Londres. Jessie, sua esposa, percebendo, encabulada, que Conrad elogiava a toda hora na conversa com Camus, o Libertad, que ele comandara durante anos, cuja miniatura decorava sua mesa de trabalho, o repreendeu: “Mas Joseph, o Libertad não era tão grande assim.” Ao que Conrad, fitando o horizonte longínquo, respondeu: “Não é o Libertad, não, Jessie, é o mar!”



   P.S.: Os campeões do Juvenil do Sport de 55, de luto, com o falecimento de seu meia-esquerda Elcyr, o popular Gogó de Sola.



   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é membro da Sociedade Amigos da Marinha.




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SAUDADE NÃO TEM COR


Publicado no JC em 22/12/10



    O que é ser moderno?

   O Manifesto Modernista de 22, na literatura e nas artes plásticas, no Brasil, teve sua importância, para enxugar a influência europeia e a gordura ainda remanescente do romantismo, simbolismo e do parnasianismo nesses, digamos, setores. Mas o esforço de dois dos seus expoentes na literatura, Mário de Andrade e Oswald de Andrade, por exemplo, para “oficializar” uma “linguagem brasileira”, pesquisando e procurando fixar períodos curtos e quentes, mais substantivos que adjetivos, não prescinde da espontânea autenticidade do vocabulário de uma Rachel de Queiroz, um Jorge Amado, um José Lins do Rêgo, líderes do que se convencionou chamar Movimento Modernista regional (nordestino), quase paralelo ao de São Paulo. Afinal, segundo Charles Vildrac na criação literária, o que importa acima de tudo é “a substância humana de cada um”.

    Os romances de Zé Lins têm cheiro de mel de engenho, personagens e paisagem da zona canavieira. Os livros de Rachel de Queiroz descrevem o sertão e seu povo num linguajar mais simples do que o de José Américo, também regionalista, mas de estilo rebuscado, pesado e clássico. Traduzindo: não se compra nem se fabrica modernismo em nenhuma manifestação artística - ou se é moderno ou não. Perenemente modernas são as canções de Dorival Caymmi, pedindo, há 63 anos, que Marina não se pinte porque ela já é bonita com o que Deus lhe deu; as de Ismael Silva, a maior influência declarada de Chico Buarque, dizendo que a mulher é um jogo difícil de acertar e o homem como um bobo não se cansa de jogar. Noel Rosa lamenta: “Luto preto é vaidade/ Neste funeral de amor./ O meu luto é a saudade/ E saudade não tem cor.”

    Ao contrário do que muitos pensam e dizem, João Gilberto não é o único “criador” da Bossa Nova. Na época dos microfones em pé, quando a moda era o vozeirão de menestréis feito Vicente Celestino e Chico Alves, Mário Reis introduziu um toque sutil de modernidade às gravações dos sambas sincopados de Sinhô com seu timbre de voz manso, suave e coloquial. Muito antes do baiano, portanto. Entre as mulheres, Dóris Monteiro e Nora Ney também já sussurravam assim, intimistas, antes de João Gilberto. Nos primórdios do teatro de revista brasileiro, Aracy Cortez lançou Linda Flor, que teria várias versões de letras modificadas, com todos os requisitos de melodia sofisticada e moderna. Só vai ouvindo: confiram na internet. Ouçam Amendoim torradinho, gravado por Dóris Monteiro e depois me digam.

    Ainda menino, em Juazeiro da Bahia, João Gilberto costumava ouvir Orlando Silva no altofalante das festinhas de praça pública da cidade. Foi com Orlando que ele aprendeu a “dividir” o ritmo e o andamento dos sambas e canções gravadas pelo “Cantor das Multidões”, que ele considera o maior intérprete de todos os tempos, superior, inclusive, a Frank Sinatra. Ele pegou essas divisões e malemolências de Orlando e as adaptou ao violão, (re)criando sua célebre “batida” da Bossa Nova. Portanto, Orlando era mais “moderno” do que o próprio João. Tanto que o primeiro disco gravado por João foi imitando Orlando.

    Sobre o Poeta da Vila, afirmou Paulo Mendes Campos, na revista Manchete, em 1954: “Noel Rosa na música popular brasileira pode ser ou não o mais psicológico, o mais poético, o mais harmonioso, o mais romântico, o mais realista, o mais ritmado etc. Indiscutivelmente, ele é apenas o maior compositor popular brasileiro.” E o grande Rubem Braga, encantado: “Vendo essas letras eu me pergunto se Noel Rosa não foi, tanto quanto sambista, um cronista e um poeta.”

    Aos 100 anos de nascimento, em pleno 2010, Noel continua sendo o mais moderno dos nossos compositores. Na prosa, Machado de Assis, que não participou do movimento de 22 nem pertenceu exclusiva e duradouramente a escola literária alguma. Quando perguntaram a Jorge Amado o que havia de novo na literatura universal, pouco antes de sua morte, ele respondeu: “Dom Quixote de la Mancha”. Ou vocês preferem o barquinho vai, a tardinha cai? Ou Na boquinha da garrafa?

    *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Federação Internacional dos Jornalistas.

 


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O FLAGRANTE QUE NÃO HOUVE


Publicado no JC em 15/12/10




   Carta deliciosa do pintor Zé Cláudio dizendo que encontrou recorte, de 26 de julho de 2006, com nossa crônica “História de pescador”. Zé viu muitas pescas de xaréu com Carybé, fez telas com motivos marinhos para Caymmi e pergunta se tenho o caderno “Pesca de xaréu.” Por coincidência, tenho, Zé. Prosseguindo, garante que conheceu Balbino, principal personagem da crônica, “que tinha fama de nunca ter andado em carro nem ônibus nem nenhum bicho de rodas, somente a pé!”

   É verdade. Eu morava na então Av. Beira-Mar, no Bairro Novo, ainda sem asfalto, próximo à colônia de pescadores do antigo farol e das peixarias de Moysés e de Pedro Babão, protegidos de Barreto Guimarães. Naquela época, começo de 60, eu ficava na varanda de casa, aguardando as jangadas que chegavam do alto-mar e ancoravam na praia ao cair da tarde, com os samburás repletos de peixe fresco. Como não levavam gelo para conservar o pescado, por falta de espaço na embarcação, tinham que regressar no mesmo dia. De tão frescos, os peixes sangravam pela guelra cor de vinho, os olhos brilhantes. Alguns saltavam do samburá, caindo na areia, para alegria dos moleques, que saíam em disparada, com eles, pro Morro do Amaro Branco, debaixo dos xingamentos dos jangadeiros.

   Entre os pescadores e peixeiros caneiros, eu era considerado o maior criminalista da America Latina, porque conseguia soltá-los, sem habeas-corpus, quando eles estavam presos de pileque. De “honorários advocatícios”, ova de arabaiana, arraia-manteiga e beijupirá. E haja moqueca de sirigado com pirão de azeite de dendê.

   Balbino, negro de um metro e oitenta, o maior tirador de coco dos sítios de Maria Farinha, Conceição, Pau Amarelo e Olinda, morava em Rio Doce e vinha, conforme Zé Cláudio, de lá até o Varadouro, assoviando canções nostálgicas de sua autoria, a pé, com amoladíssima foice de lâmina de aço, fabricada especialmente por Amaro, da Fundição Camaragibe, para onde ele também ia a pé. Sua foice, de tão afiada, emitia som cristalino quando ele descascava o coco verde: Tain! Tain! Tain!, como quem fazia a ponta do lápis.

   Meio-dia em ponto de um domingo ensolarado, e céu azul, estávamos na nossa varanda com Inaldo Vilarim, Canhoto da Paraíba, Adão Pinheiro, Ernane Reis e Isaurinha Garcia, aguardando fumegante mão-de-vaca, chega Zito da Agulha e diz que a Rádio Patrulha estava “levando Balbino”.

   Havia uma pequena feira livre num terreno baldio próximo ao Antigo Circular do Bonde. Balbino comprava farinha nessa feira, quando a RP deu-lhe voz de prisão, em flagrante, alegando que ele estava armado. Ora, a foice que Balbino, homem valente, mas pacato, sempre trazia dentro de uma cestinha de palha e envolta em jornais velhos, era seu instrumento de trabalho, não se caracterizando como porte ilegal de arma, e foi isso que argumentei pro cabo da RP. No começo, os soldados insistiram na detenção de Balbino, que não tinha Carteira de Identidade ou Profissional, Título de Eleitor, CPF, diploma universitário. Do seu parco vocabulário, não constavam as palavras viés, entorno, acoplado, a nível de. Muito menos outrossim, data vênia, vetusto, sodalício e cônjuge. E convidei a patrulha para tomar uma geladinha no alpendre lá de casa. O comandante da guarnição riu: “Obrigado, doutor, mas estamos de serviço”. E soltaram Balbino, que comemorou a liberdade, na hora, com generosa talagada de cana, ali mesmo, na feira. Deus seja louvado!

   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é do Instituto Histórico de Olinda.


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BODE GUISADO



Publicado no JC em 08/12/10  

   Geraldo Freire é um comunicador da gota serena, da “molesta dos cachorro”, inoculado pelo saudável veneno do deboche brasileiro, da pornofonia espontânea, sem censura. Sua audiência é tão grande que a censura moralista não tem coragem de mexer com ele. O ouvinte de seu programa não sabe por que seus entrevistados se saem tão bem. Vou revelar o macete: quando Geraldo formula a pergunta, ele já sabe que a provocação dará resultado, e fica rindo na cara do freguês. É um incentivo para quem está ali na cadeira elétrica.

   No dia 23 de novembro, participei de uma “mesa redonda” nesse seu programa, com Liedo Maranhão e Ney Maranhão. Quando saímos, convidei todos para almoçarmos ali perto, no Restaurante de Geraldo, em Santo Amaro. Alegando compromissos anteriormente agendados, Geraldo e Liedo recusaram o convite, e Ney disse que não almoça porque toma café reforçado, na base de coalhada e três ovos “a la cock”. “E se for bode guisado, com fava?”, perguntei. “Se for bode, eu topo”, respondeu o senador vaqueiro, criando ânimo novo, como diria minha mãe.

   Antes do rango ser servido, Ney contou estórias do arco da velha. De suas farras com o amigo e ex-presidente João Goulart, dos pegas em carros esportivos envenenados, de Olinda para a praia de Boa Viagem, e das boemias, com Zinho Peru, embora não bebesse. Confessou sua atual admiração pela China, onde goza de prestígio com os dirigentes chineses. Seu encantamento pela China é compartilhado com Joezil Barros (“tudo lá é grandioso”), João Bosco Tenório e Celso Muniz de Araújo. Ney garante que na China há democracia, mas crime contra o Estado é rigorosamente punido, na maioria dos casos, com execução. O réu é fuzilado na aldeia ou cidade onde nasceu para servir de exemplo aos conterrâneos e tornar mais fácil para o governo o reembolso das despesas com munições gastas com o biltre – quem mandou! Ele mesmo presenciou três dessas execuções, em praça pública, e fiquei pensando o que seria dos corruptos brasileiros, se morassem na China e fossem julgados pelas cortes chinesas.

   Indaguei a Ney se ele se lembrava do romance de Jango com a vedete Angelita Martinez, baixinha de corpo escultural. Memória privilegiada, respondeu que sim. Contei então que em O Anjo de Pernas Tortas, Ruy Castro diz que Jango era apaixonado por Angelita, que era apaixonada por Garrincha, que era apaixonado por Elza Soares, feito aquele poema de Manuel Bandeira. Jango costumava presentear as vedetes com geladeira, não se sabe bem por quê. Certa noite, Jango foi ao apartamento de Angelita, bateu na porta, ela estava com Garrincha, não o atendeu e, conforme Ruy, o ex-presidente meteu bala na fechadura. Angelita tomou um táxi, desembarcou na casa de Elza Soares, na Urca, e armou o maior barraco: “Cai fora, crioula, que esse homem é meu!”, referindo-se ao homem de Pau Grande.

   Ney achou graça, pediu abacaxi de sobremesa, cafezinho expresso, e fomos pegar o carro no estacionamento da Rádio Jornal do Commercio, onde estava seu possante Diplomata, que ele conserva carinhosamente há vinte anos, e no qual se desloca todos os dias de sua fazenda, em Vitória de Santo Antão, para a Praça do Carmo, e vice-versa. Sim, Ney disse que Jango Goulart era um matutão simpático e de bom coração, não podendo, portanto, ser presidente da República. Que Jango era um boiadeiro, e como tal, um cara franco, como ele, Ney Maranhão. Para “collorir” nosso almoço, perguntei se ele se lembrava de Nélia Paula, célebre vedete de teatro de bolso(ou de revista) da companhia de Walter Pinto, que trabalhou na peça “Tem Bumbumbum no Bobobó”, ele se lembrava, como não? Os cabelos prateando, ando meio esquecido, mas não esqueci um nu-artístico de Nélia na Festa da Mocidade, aqui no Recife, hipnotizando e calando os marmanjos e velhinhos da fila do gargarejo, a turma do sereno e penetras que brechavam as frechas de madeira compensada em gloriosas noitadas de lua cheia – que saudade!

  *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.



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MALDITA TENDÊNCIA



Publicado no JC em 01/12/10   

O grande e esquecido Ataulfo Alves, que foi, durante anos seguidos, um dos homens mais elegantes do Brasil, segundo Ibrahim Sued, tem um samba lindo cuja letra pergunta à amada que partiu quem foi o culpado pela separação: “(...) Quem foi, me responda se acaso fui eu, ou se foi a maldita tendência, que sempre tiveste pro mal?”

   Talvez, consciente ou inconscientemente, o compositor mineiro estivesse abraçando a tese lombrosiana, segundo a qual certos indivíduos nascem predispostos ao crime. A propósito, recebo e-mail de meu sobrinho Ricardo Carvalho, com excelente artigo do advogado baiano Daniel Nicory do Prado, visando reapresentar à comunidade acadêmica o trabalho pioneiro de Aloysio de Carvalho Filho, que, entre 1939 e 1950, publicou ensaios que poderiam ser, conforme o autor, perfeitamente enquadrados no campo “Direito e Literatura”, cujo desenvolvimento, no Brasil, intensificou-se nesta década, a primeira do Século XXI.

   Acrescenta Nicory do Prado que Carvalho Filho, jurista e político baiano, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, parlamentar influente em duas Assembléias Nacionais Constituintes, “homem de vasta erudição, que antecipou em quase setenta anos uma discussão acadêmica que está na ordem do dia, ao fazer abordagens interdisciplinares da obra de Machado de Assis”, serviu-se de recursos da crítica literária e da teoria jurídica, para compreender melhor algumas questões da dogmática penal, como as causas do comportamento criminoso e a cogitação criminosa não exteriorizada, a partir da literatura, concluindo que o bruxo foi fortemente influenciado pelo pensamento de Lombroso, para quem os agentes criminosos estariam biologicamente condicionados a delinquir. Como exemplos, Carvalho Filho analisou em pormenor a personagem Nóbrega, de Esaú e Jacó, além de Capitu e Bentinho, protagonistas de Dom Casmurro.

   O importante nos ensaios de Carvalho Filho comentados por Nicory do Prado, o Processo Penal de Capitu e Machado de Assis e o Problema Penal, é a tese defendida por ele, segundo a qual Machado de Assis teria sido um lombrosiano. Carvalho Filho achava que Capitu teria uma “predisposição irresistível à infidelidade conjugal”, a mesma coisa dita em outras palavras por Ataulfo Alves. Segundo ainda Carvalho Filho, os personagens de Machado de Assis teriam “pulsões criminosas” e seriam movidos por sua natureza a delinquir. Assim, pode-se afirmar, sem receio, que tais trabalhos são reflexões sobre o “Direito na Literatura”. O nível de inter-relação entre os dois fenômenos tem atraído a atenção dos pesquisadores contemporâneos. E o mais interessante é notar que esse entendimento de Carvalho Filho vem sendo defendido por ele desde 1939. Voltando à obra do Velho da Montanha, Carvalho Filho (considerado por Café Filho, em suas Memórias, como “a figura mais brilhante do Senado”) entende que a típica personagem de Machado de Assis seria “plena de dolo e vazia de conduta”. Não conheço definição melhor, sobre o tema, à luz do Direito Penal.



*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Pernambucana de Letras Jurídicas.



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CAOS URBANO






Publicado no JC em 24/11/10    

 Conheço quase todas as capitais brasileiras. Não sei de alguma com o centro comercial mais imundo e fétido do que Recife. Vou repetir somente à guisa de informação que quando aqui desembarquei a bordo do paquete D. Pedro II, do Lloyd Brasileiro, Recife era considerada a terceira cidade do Brasil e uma das mais limpas e bem iluminadas da América Latina. Mendigos, só os clássicos, tradicionais e conhecidos, que esmolavam nas pontes.

   Hoje, ninguém pode andar em paz na Rua 7 de Setembro, na Imperatriz, na Conde da Boa Vista, na Rua do Hospício, na Rua da Aurora, na Rua da União, na Riachuelo, na Rua da Hora, na Rua Nova, na Avenida Guararapes, na Dantas Barreto, na Imperador. O mais impressionante, são as “casas de lanche” construídas em alvenaria sobre as calçadas dessas ruas. Como esses “comerciantes” conseguem levantar esses “imóveis” sem a proibição da Prefeitura? Como se não bastasse, eles espalham cadeirinhas, sobre as calçadas, para a freguesia lanchar e almoçar. Vêem-se, então, cenas dignas das cidades maios atrasadas da África e da Índia: as pessoas comendo cachorro-quente com refresco ou refrigerante, em cima do esgoto a céu aberto que corre no meio-fio. Os camelôs tomam conta dos passeios, vendendo frutas, verduras, material escolar, coco verde, cd e dvd pirata, relógio, celular e mercadoria portátil contrabandeada. Fazendo concorrência à feira de Caruaru, que tudo tem, os ambulantes vendem amendoim cozido e torrado, milho verde assado na hora, em fogareiros ou cozidos em panelões. Temos também bolsas de toda espécie, sapatos e sandálias.

   Uma altura dessa o leitor já está perguntando se sobra espaço livre para o pedestre andar. Claro que não. Se o pedestre quiser sambar ou fazer o passo, é só baixar na tradicional Rua da Imperatriz. Lá ele encontrará gigantescas caixas de som nas portas das lojas e, de quebra, “locutores” empunhando microfones e convidando o cliente a comprar as pechinhas anunciadas pelos comerciantes. Tem também, na Imperatriz, uma senhora vendendo veneno pra rato, numa caixinha de papelão. Vendem-se também, na Rua da Imperatriz, bolos, biscoitos, água mineral e pipoca. Sorvete e picolé, nem se fala. Se tanta “energia” fizer sua pressão subir, conte com várias “enfermeiras” para medi-la e inclusive medicá-lo, tudo isso a um real. À frente de certa farmácia, requebram dois jovens fantasiados de mulher. Se você quiser passar pela Imperatriz conversando com alguém, não conseguirá. Os sons saídos das lojas num volume ensurdecedoramente selvagem, não permitem.

    O centro comercial do Recife, exalando excrementos em todas as suas artérias, é uma agressão à criatura humana. Uma vergonha. Breve falaremos sobre as passeatas, que param o trânsito, prejudicando quem quer trabalhar.



   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Federação Internacional dos Jornalistas.




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PRECONCEITO


Publicado no JC em 17/11/10   

   Acho que não devemos levar a sério essas agressões gratuitas de alguns paulistas. A morte dos nordestinos por afogamento não é a vontade “oficial” e unânime dos paulistas - é apenas a reação de uma jovem politicamente alienada. Um caso isolado, embora circule pras bandas de São Paulo, segundo notícias, abaixo-assinado com cerca de mil e quinhentas assinaturas nos xingando. O que não é relevante se levarmos em conta a densidade populacional daquele Estado. Conheço muitos paulistas e sulistas civilizados, educados, que não comungam com essas coisas.


   Isso vem de muito tempo.


   No começo de 1950, no Internato São José, dos Irmãos Maristas, na Tijuca, Rio de Janeiro, tinha um aluno enorme, bigodão negro, de Corumbá, Mato Grosso do Sul, chamado Baruck. Todo santo dia, no café-da-manhã (era o “chefe” da mesa), ele fazia o sinal da cruz, puxava a oração, sentava e dizia: “Depois do meio-dia, o baiano vira”. A gracinha era dirigida a mim e a Carnaúba, alagoano baixinho, magrinho e mirradinho. Entrava mês, saía mês, Baruck nos insultava.


   No último dia do curso, com as provas já realizadas, Baruck almoçou conosco e antes do almoço disse, risonho, ao se benzer: “Depois do meio dia, o baiano vira”. Carnaúba nem titubeou, atirou uma xícara de café quente na cara dele, que soltou um urro de dor e pediu socorro. Carnaúba, como bom amarelinho, estava apenas começando sua vingança. Pegou uma faca sobre a mesa, encostou no peito de Baruck, já quase cego: “Repita, seu f.d.p.! Repita, seu f.d.p.!” Baruck gritava, implorando ajuda, chegou Irmão Estêvão, um espanhol careca, censor dos maiores (Irmão Rosinha era o censor dos médios), levaram Baruck para a enfermaria, no primeiro andar, onde recebeu os primeiros atendimentos, removendo-o em seguida, para o Hospital Souza Aguiar.


   Nunca mais tive notícia de Baruck, goleiro frangueiro do time do Internato São José, cuja linha média era Laranja, Batata e Tomate, que jogava todo ano contra o Externato São José, também dos irmãos Maristas, então estabelecido perto do Maracanã. De tão complicadas, essas partidas eram apitadas por árbitros da primeira divisão, da Federação Metropolitana de Futebol: Tijolo, Malcher, Mário Vianna etc. Soube, recentemente, que Carnaúba é promotor de Justiça aposentado em Maceió. Baruck, filho de rico fazendeiro de Corumbá, dono de enorme rebanho de gado de raça e abate, era “peixinho” dos irmãos, porque gerenciava, juntamente com Caniço – aluno tão magro que fazia jus ao apelido, a cantina dos maiores do colégio, onde o lanche preferido era pão-de-mel com coca-cola - por isso não sofreu sanção alguma. Quiseram expulsar Carnaúba, mas o ano letivo já havia terminado. Nunca esqueci esse episódio - e faz tempo! Quando li a besteira dessa estudante de São Paulo, aconselhando os paulistas a afogarem nordestinos, me lembrei dele. São fatos que guardamos na memória, embora não tenhamos experiência e idade ainda para analisarmos melhor quando acontecem.


   Baruck não era mau sujeito e essa brincadeira de baiano vira é mais próxima do animus jocandi do que do animus injuriandi. Afogar pessoas é grave, mas esse “conselho” não pode ser tomado como desejo de uma população, Estado, ou região. Tanto que o pai da moça é frontalmente contra a atitude da filha e sua irmã foi agredida e achacada na mesma faculdade de Direito onde estudam.

   Vida que segue...


   P.S.: Delícia o livro Sete Ranchos, de Gilvan Lemos, pela Editora Nossa Livraria.


   *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Federação Internacional dos Jornalistas



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KITO HOPE NO BENTO MAGALHÃES?




Publicado no JC em 10/11/10  





   1. Carta do pintor José Cláudio, a propósito de Cambulhadas, crônica publicada aqui em 27 de outubro: “Amigo Arthur. Que linda crônica! Poética, leve, aquarela pintada quase sem tocar no papel. A surpresa do meu quadro ali naquele bairro sagrado que não se foi porque habitado por deuses e principalmente deusas, e viverá eternamente no coração dos boêmios. Muitíssimo obrigado.”


   2. E-mail do turfman e escritor Sérgio Barcellos vibrando com a vitória de seu cavalo Kito Hope, que reapareceu brilhando no GP Salgado Filho (Grupo II), principal atração do domingo, 17 de outubro, no Hipódromo da Gávea. Conforme notícias, com direção perfeita de Jean Pierre e tratamento nota dez de Idelfonso Felipe de Souza, do Stud Sérgio Barcellos, o castanho de 4 anos assinalou 1m38s21 nos 1.600m na areia macia.


   Aos não-iniciados, esclareço que areia macia é quando a pista não está encharcada, ou seja, não está pesada. Deve ter caído alguma aguazinha para ela ficar macia - se não caísse, seria pista leve. E aos turfistas do Prado da Madalena, onde estive recentemente assistindo ao GP Edísio Pereira (homenagem a esse ex-jogador amador do Sport, meu velho amigo e poderosa canhota), vencido pelo tordilho Recompensado, direi que dada a partida, na terceira posição, Kito Hoper vigiou de perto a luta acirrada pela ponta entre Morena Matte e Pongo. Depois apareciam Olympic, Hawk, All Hopes, Davignon e Leão Coroado. Na curva, Jean Pierre tirou seu conduzido por fora e – segundo a crônica – saltava aos olhos a facilidade com que o animal já dominava o páreo. Deste ponto em diante, foi só fugir para o disco, para obter a sexta vitória em 11 apresentações e 2 segundos, oito na areia.


   Vou telefonar para Sérgio (com a autorização da diretoria do Jockey Club de Pernambuco) para sondar a possibilidade da vinda de Kito para disputar o Bento Magalhães, já que o areião da Madalena deverá agradar esse puro-sangue inglês de 505 quilos de músculo e fúria. Vaidoso de seu campeão, Barcellos informa que ele é tido por alguns como o melhor areiero do Brasil. E na milha, um problemaço para os outros. De garbosa presença, quando a porta abre, dispara em alta velocidade e impõe ritmo forte difícil de acompanhar. Se tentam segui-lo, correm o risco de ficar pelo caminho - e se o deixam galopar, não chegam a tempo. Um presente que a divindade resolveu conceder a Barcellos e à sua paixão pelas corridas, “no outono da vida”. Barcellos está se divertindo muito com Kito.


   Querido Sérgio: Essas são as coisas boas da nossa breve e fugaz existência nesse vale de lágrimas. Pode crer. Parabéns!


   P.S.: Hoje, às 19h., na Livraria Cultura, lançamento do livro BONITO Pernambuco História e Ecologia, organizado por Kleber de Burgos (CEPE e a ONG Sabiá da Mata). Imperdível.



*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Federação Internacional dos Jornalistas.


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NO SILÊNCIO DA MATA

Publicado no JC em 03/11/10




   Descendo uma pequena ladeira, por entre palmas e mandacarus, vamos encontrar seu mocambo de taipa,coberto de palha de coqueiro. É um pequeno mocambo caiado de branco, com alpendre, portas e janelas azuis. Tem dois quartos, sala de visitas, copa e cozinha. No alpendre, gaiolas penduradas com sabiá-gongá, galo-de-campina, sanhaçu, canário-da-terra e curió.

   Quando seu João Nepomuceno resolveu morar ali, sozinho, não tinha nenhum pássaro, foi adquirindo alguns na feira de Gravatá, pegando outros de alçapão e arapuca, trocando mutucas com os meninos da redondeza. E logo percebeu que os passarinheiros eram uma confraria de hábitos, gostos e vocabulários próprios. Se a canária está de fogo, “corruchia” para o companheiro, incentivando-o a enfrentar o macho rival ou oferecendo-se para o acasalamento. Houve tempo em que Recife tinha várias “rinhas” de canários de briga: entre elas, as da Torre, Baixa Verde, Nova Descoberta, Beberibe. A freqüência, constituída de apostadores e canaristas, era das mais heterogêneas: médicos, advogados, motoristas de táxi, cobradores de ônibus e lotações, soldados de polícia, empresários, vagabundos.

   Construí um viveiro no quintal de nossa casa, na Capunga. Nele, soltava canários brancos que eu comprava aos gaioleiros Ferreirinha e Limoeiro e no mercado da Madalena. Canários brancos ou pintados são os ainda jovens, “mudas-de-mato”. Aqueles de penas sujas, criados soltos, na mata, plumagem sujeita às intempéries e poluição atmosférica. No cativeiro eles vão limpando as penas, com o tratamento especial do dono, alimentação balanceada, na base do alpiste de primeira, do painço, pepino, de vitaminas, água limpa pra beber e fresca pra tomar banho nos potes de barro.

   Assim que o canário branco ficava adulto, todo amarelinho, um amarelo gema de ovo, eu o vendia aos canaristas. Um grande freguês meu, o saudoso Nando Dubeux, morava na Rua das Graças, defronte da mansão dos irmãos arquitetos Zildo, Zenildo e Zamir Sena Caldas. Lembro de “Galinheiro”, um canário enorme, elegante e valente, que dei de presente a Nando e ele batizou com o nome de guerra de “Galinheiro”, porque o viveiro onde ele “fez a muda”, no fundo do nosso quintal, era vizinho ao galinheiro. Naquela época, as residências das Graças ainda cultivavam o saudável hábito de criar perus, patos e galinhas. Também usavam gansos para vigiar e fazer a segurança da casa, dando o alarme e espantando o ladrão com seu grasnar. “Galinheiro” ganhou os torneios que disputou, nos bairros do Recife, nas mãos de Nando Dubeux, e se aposentou invicto. Nando rejeitou todas as propostas para vendê-lo. Um executivo quis trocar seu Fusca do ano por “Galinheiro”- Nando não aceitou a oferta. Mesmo porque, além de gozar de boa situação financeira, já havia se afeiçoado ao passarinho.

   Me lembrei disso, quando vi os dois canários de João, estalando na sua varanda, ao entardecer. E eu, que não ia demorar, porque estavam me esperando, na Buchadinha do Gordo, fiquei pra janta de macaxeira com charque, tapioca de coco e café torrado na morada de seu João Nepomuceno, negro ritinto, maquinista de trem aposentado da antiga Great Western, 82 anos bem vividos.

*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é do Instituto Histórico de Olinda.




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CAMBULHADAS



Publicado no JC em 27/10/10





   Fim de noite nublada, chuvosa e fria quando entrei no Texa’s Bar com o poeta Thomás Seixas. Thomás gostava de madrugar no Texa’s depois de escalas pelo 28, Silver Star e Moulin Rouge.

   O Texa’s regurgitava de marinheiros do cruzador Tamandaré, tripulantes do paquete Comandante Capela, proveniente do porto de Cabedelo, e de marujos de barcos pesqueiros coreanos e japoneses do Kaiko Maru. Quem ali ingressasse, naquele momento, sentiria o odor acre de peixe e maresia, entranhado nas roupas tresandando a azedo, manchadas de sangue de albacora, desses marujos, e do perfume falsificado e barato dos malandros, policiais, travestis, cafetinas, prostitutas, traficantes e boêmios. Inalava-se, também, sem querer, a fumaça de cigarro americano e de maconha que impregnava o ambiente, reduzindo a oxigenação e dificultando a respiração dos fregueses.

   Sylvio Caldas interpretava o samba Favela, na radiola de ficha, uma tela de Zé Claúdio com o transatlântico italiano Conte Grande emoldurando a parede, transportava o mar para o bar. Thomás tinha me advertido: “Se quiser noitada morna, vamos ao Chantecler ou Flutuante, e depois um camarão ao molho de tomate ou filé com fatia de pão, presunto e fritas no Gambrinus, pra forrar o estômago. Se preferir fortes emoções, o Texa’s.” Como preferi o Texa’s, estávamos ali ouvindo o Caboclinho Querido, entram Gilvan Lemos e Fernando Monteiro, Fernando com três livros: O triste fim de Policarpo Quaresma, Memórias de um sargento de milícias e o Ateneu. Estranhei porque essas obras podiam estar com Gilvan, enquanto as fitas de Gilda, Arroz amargo e Uma rua chamada pecado, trazidas por Gilvan, com Fernando. Mas ali o que se via, talvez pelo adiantado da hora, era o contrário. Nisso, surgem Homero Fonseca, com Madame Bovary, A condessa descalça e O anjo azul a tiracolo, e Kléber Mendonça com Expresso de Shanghai, A dama das camélias e Vinhas da ira. Teriam vindo de algum festival de cinema? Tentando saber, fomos interrompidos por Thomás Seixas recitando Baudelaire e Rimbaud. Quando Seixas quis declamar Augusto dos Anjos, o escritor Luiz Carlos Albuquerque cortou: “Esse não, esse é comigo!” E mandou brasa: “Recife. Ponte Buarque de Macedo. Eu indo em direção à casa do Agra, assombrado com minha sombra magra, pensava no destino, e tinha medo!” “É de arrepiar!” – murmurou Marcus Accioly, a tudo presente.

   Alheia à tertúlia literária, Vanusa Flor de Lis, violenta paixão de Waldemar Machado, flutuava no salão, ao compasso do bolero, soltando os cabelos loiros, com um fuzileiro naval, olhando insistentemente pra mim, procurando Waldemar. Eu deixara Waldemar na Churrascaria Riviera, no Pina, tomando cuba-libre, seu drinque preferido, ao entardecer, na companhia de alegres meninas e de Djalma Procópio, me plantei. Vanusa (uma vida de cambulhada) era mulher pra alugar carro de praça e armar barraco com Waldemar no Riviera, rodando a baiana.

   O pau cantou, no Texa’s Bar, voaram mesas e cadeiras, quebraram copos e garrafas, japoneses e coreanos distribuindo golpes marciais, entre eles, pra todos os lados, no acanhado espaço do bar, Thomás impassível, como sempre, dando baforadas no seu cachimbo Denny Hill (de espuma de coral), terno de casimira preta, camisa de seda amarela, casca de ovo, gravata italiana com alfinete de pérola, polainas, bengala de jacarandá, castão de prata, relógio de algibeira Patek Philippe de ouro, correntão de ouro. O cacete comendo no centro, e ele extasiado: “Maravilha! Maravilha! É o próprio Lord Jim! O próprio Conrad! O Coração das Trevas!”

   Foi quando chegaram, esbaforidos, Renato Carneiro Campos e o vate Garibaldi Otávio, com recado urgente de Selma Rosa de Maio, pra mim. Mas essa é outra estória. Depois eu conto.

*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.

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CRIME DE GUERRA


Publicado no JC em 20/10/10 




   A propósito do tema aqui abordado quarta-feira passada, vamos acrescentar um fato pitoresco e uma indignidade que aconteceram na Segunda Guerra Mundial em nossa costa envolvendo o torpedeamento de navios mercantes brasileiros por submarinos alemães.

   Em seu livro Guerra no Continente, o historiador Hélio Silva conta que o paquete Cairu do Lloyd Brasileiro zarpou de Belém do Pará com destino aos Estados Unidos. Com pneumonia, seu comandante, José Moreira Pequeno, foi aconselhado pelos médicos a não viajar. Mas o velho marinheiro resolveu comandar seu barco porque os alemães haviam afundado, recentemente, os mercantes Olinda e Buarque, e sua recusa em viajar poderia parecer covardia. Às dezenove horas do dia oito de março de 1942, a 130 milhas de Nova Iorque, o Cairu foi torpedeado pelo submarino alemão U-94, do Capitão-de-Corveta Otto Ites, que veio à tona, e indagou em escorreito português aos náufragos de uma baleeira, que navio era aquele e o nome de seu comandante. Por questão de segurança, o imediato disse que o comandante era ele, e o tedesco começou a fazer perguntas. Perguntou qual fora o porto de partida do Cairu, que carga transportava e seu destino. O imediato respondeu despistando o oficial alemão, que resolveu “refrescar-lhe a memória”, citando todos os portos que o Cairu tinha escalado no Brasil e inclusive a carga de material estratégico (cristal e mica) que conduzia. Claro que essas informações tinham sido fornecidas ao inimigo pela Quinta-Coluna Brasileira, muito atuante àquela época.

   Perplexo, o imediato quis saber do comandante da nave onde ele tinha aprendido a falar português tão elegante. O alemão disse que fora telegrafista de transatlânticos germânicos, durante dez anos, e que aprendeu português quando passava pelo Rio de Janeiro e ia tomar chope no Amarelinho, na Cinelândia. Depois forneceu quinze litros de água, alguns alimentos e uma garrafa de rum aos tripulantes, indicando a eles o rumo do litoral. Segundo notícias, controvertidas, durante a noite, muito fria, José Pequeno, comandante do Cairu, embarcado numa baleeira, pressentindo que iria morrer em breve, e não querendo ser estorvo para seus subordinados, se atirou no mar e morreu.

   Uma das maiores covardias feitas pelo nazista Harro Schacht do submarino U-507, que já havia afundado o Baependi, o Araraquara, o Piave e o Aníbal Benévolo, foi a detonação da barcaça Jacira, do Mestre Norberto Hilário dos Santos, a 10 milhas da barra de Itararé, sul da Bahia. Jacira, espécie de saveiro grande que locava mercadorias e passageiros, foi alvo de uma agressão escrota. Segundo boatos, os descendentes das vítimas entraram com ação indenizatória contra a Alemanha, estando o processo em tramitação.

   A isso denomina-se crime de guerra. Vamos torcer para que a Marinha consiga desativar as minas marítimas que procura em Maragogi, litoral norte de Alagoas. Para o bem de todos e felicidade geral da

*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Federação Internacional de Jornalistas.



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MINAS DE MARAGOGI


Publicado no JC em 13/10/10



   Foram encontradas minas marítimas da Segunda Guerra Mundial, em Maragogi, litoral-norte de Alagoas. A Marinha está varrendo o local, tentando achar os artefatos ali enterrados. Interessante, por dois motivos: primeiro, porque o conflito acabou em 1945, portanto há 65 anos, e segundo, porque ainda tem gente grande dizendo que não houve guerra no Brasil. A Marinha quer saber se essas minas são alemães ou americanas. Em tese, poderiam ser também italianas, uma vez que submarinos italianos também rondaram nossa costa à época.

   São muitas as lendas em torno da atuação dos submarinos nazistas no nosso litoral, principalmente do sul da Bahia ao Maranhão. Um dos boatos mais comuns e que perdurou durante muito tempo, inclusive após a guerra, era o de que os navios mercantes brasileiros foram torpedeados pelos americanos para forçar o Brasil a entrar no conflito com o Eixo. Isso foi desmentido e esclarecido pelo historiador Hélio Silva em seu livro Guerra no Continente, em que ele descreve todos os bombardeios de embarcações brasileiras feitos pelas belonaves alemães, baseando-se no arquivo secreto da Marinha de Guerra Alemã, em Berlim.

   Costuma-se dizer que esses torpedeamentos foram covardes, uma vez que suas vítimas eram mercantes neutros que transportavam passageiros civis. Longe de se querer justificar ou explicar esses naufrágios, diga-se, a bem da verdade, que, embora o Brasil ainda não tivesse declarado guerra aos países do Eixo, alguns desses barcos brasileiros realizavam deslocamento de tropas, de um Estado para o outro, e conduziam matéria-prima de armas bélicas para os Estados Unidos.

   O Brasil só declarou guerra à Alemanha depois que os alemães afundaram o paquete Baependi, do Loyd Brasileiro, no limite dos Estados da Bahia e de Sergipe. Os representantes dos sindicatos civis protestaram defronte do Palácio do Catete, obrigando Getúlio Vargas e seus refratários ministros militares a declararem guerra à Alemanha. Pouco tempo antes, Getúlio discursara a bordo do encouraçado Minas Gerais, dizendo que uma nova era se descortinava no mundo, cantando loas aos regimes fascistas que aos poucos tomavam conta da Europa dominada por Hitler.

   Cerca de 32 navios brasileiros foram afundados pelos alemães entre o litoral brasileiro e o Golfo do México. Já contei essa história, mas acho oportuno repeti-la mais uma vez. Em 1942, viajei do Rio para a Bahia no Araraquara, já todo pintado de cinzento, com a proibição de acender qualquer luz no seu interior para não atrair submarinos inimigos. Desembarcamos em Salvador, o Araraquara permaneceu alguns dias naquele porto para reparos, depois zarpou com destino a Recife e foi afundado pelo mesmo submarino que liquidou o Baependi em litoral sergipano.

   P.S.: A propósito, quem sabe muita coisa sobre a Segunda Guerra Mundial é o advogado Carlos Marques, residente e domiciliado na comarca de Afogados da Ingazeira.

*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é do Instituto Histórico de Olinda.


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SILÊNCIO E SIMPLICIDADE



Publicado no JC em 06/10/10



   Perguntaram, certa vez, a Rubem Braga qual é a melhor coisa do mundo - e ele respondeu: “Sal”. Mas o grande cronista gostava também das coisas simples da vida, como pescar, tomar banho de mar, andar de barco, dormir em rede e beber uma cachacinha amiga. Chegou a escrever uma crônica sobre simplicidade.

   Nela, entre outras considerações, ele pergunta por que temos que beber água gelada, se a água fresca da moringa era tão boa. Indaga por que essa sede quase insaciável do homem de conquistar mulheres. Por que as noitadas de boates, em ambientes poluídos pela fumaça do cigarro, com o frio encanado e desagradável do ar-condicionado? E conta que uma vez estava em plena floresta amazônica, sob forte aguaceiro. De repente, foi acolhido por um velho seringueiro que o convidou a se agasalhar em sua palhoça e lhe ofereceu um trago de cachaça, que muito o reconfortou. E jantou um peixe moqueado, pescado ali, à margem do Rio Araguaia. Ele confessa que nunca tinha se sentido tão bem como com aquele trago de aguardente e aquele peixe moqueado.

   Ah, as coisas simples da vida!

   Apesar de instruído, valente e trabalhador, João Saldanha era homem de hábitos simples. Morava em Copacabana, acordava, ia à praia, batia pelada e, ao cair da tarde, se reunia com a turminha da Miguel Lemos para jogar conversa fora. Já famoso, treinador do Botafogo e do Selecionado Brasileiro, comentarista de rádio e TV, colunista de diversos periódicos, seu carrinho era um Fusca de terceira mão. Tinha apenas, conforme depoimento de suas quatro ex-mulheres, duas calças jeans, três ou quatro camisas brancas de manga comprida, um chapéu e dois pares de mocassin. Seu prato preferido, feijão com arroz, carne moída, purê de batata e um ovo frito em cima. Quando viajava de avião, comia somente pão com manteiga. Segundo Thereza Bulhões, ele chegava em casa com os bolsos cheios de notas amassadas e as jogava em cima de qualquer móvel. Thereza perguntava o que era aquilo, ele respondia “meu ordenado”. Ela reclamava, porque ele merecia ganhar mais, ele resmungava: “Mais pra quê?”.

   Vocês querem coisa melhor e mais sagrada do que o silêncio? Onde eu residia, no Bonsucesso, em Olinda, a rua é calma. A partir das seis horas da tarde, só trafegam por ela os carros dos moradores do bairro. À medida que a noite avança, o silêncio vai aumentando. Na Av. Beira-Rio, na Madalena, a buzina dos motoristas, cujas genitoras habitam a zona, e a sirene das ambulâncias, dos bombeiros e da polícia infernizam a área. Penso me refugiar para sempre, na Serra das Russas. Quero acordar com o canto dos pássaros e o mugido dos bois, “sem rádio e sem notícia das terra civilizada”.



*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.



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SALVOS PELO LEÃO DA ILHA


Publicado no JC em 29/09/10
   Dez de abril de 1964. Saímos, Jomard Muniz de Britto, Marcius Cortez e eu, da Torre de Londres, uma hora da manhã, rumo à Conde da Boa Vista, onde iríamos jantar na Cantina Bom Jesus. Eu dirigia um Prefect 51, carrinho inglês cujo apelido era bodinho, de tanto que pulava. O carro era tão chique que o cara que me comprou, anos depois, terminou trocando-o por um jegue. De tão sofisticado, o bodinho tinha teto solar, ou seja, um buraco no teto que obrigava Jomard a abrir o guarda-chuva dentro dele, em noite de tempestade. Durante o inverno, eu tapava o buraco com papelão, o que emprestava ao Prefect um ar surrealista, com todos nós dentro dele.

   Na dita noite de 10 de abril, em plena efervescência do movimento de 1964, resolvemos cortar caminho, passando defronte do então Quartel General do IV Exército, ao lado da Faculdade de Direito da UFPE. Na frente do quartel havia uma “blitz” de soldados do Exército portando metralhadoras e baioneta calada. Dois soldados nos pararam. Um se aproximou de mim, apontou o fuzil pra minha cabeça e disse pro outro: “Que carro estranho, só tem os bancos da frente!” Jomard vinha ao meu lado, no banco do passageiro, e Marcius Cortez atrás, sentado num engradado vazio de cerveja. “Vai ver que eles tiraram o banco pra carregar coquetel molotov”, disse um soldado pro colega. Enquanto um dos soldados estava remexendo na mala do carro, à procura de cartas de Mao Tse-Tung, o que apontava a baioneta calada pra minha cabeça cutucou: “Tá com medo, compadre?”

   Naquele momento de aflição, só me veio um pensamento - “Agora, ou me consagro ou me liquido”: “Você já viu rubro-negro covarde?” O soldado baixou a guarda: “Você é Sport?” “Sou”. E ele: “Tem alguma arma aí na mala, Geraldo?” “Só tem mesmo um pneu velho do suporte”, respondeu o outro soldado. “Então, tá limpo. Vai-te embora, meu irmão”, disse o soldado do fuzil. Liguei o motor e lasquei o grito de guerra: “Pelo Sport tudo!” “Tudo!”, repetiu o soldado. Pergunta-se: este país comporta alguma revolução?

   Acontece que Jomard, o vanguardista, havia lançado, pouco tempo antes, no final do governo do deposto Miguel Arraes, seu primeiro livro, Contradições do homem brasileiro, promovendo a “tarde de autógrafos” no pé da Ponte Duarte Coelho, descendo à direita, para a Rua da Aurora. Logo após Jomard dedicar o primeiro exemplar a Luizinho da Costa Lima, para um automóvel negro, chapa oficial. Era o governador do Estado, Dr. Miguel Arraes de Alencar, que desembarcou, comprou o livro de Jomard, ganhou um autografo do autor, agradeceu e foi embora.

   Notando o interesse de Arraes pelo seu título, Jomard dedicou vários volumes para alguns secretários do então governador, e me pediu para entregá-los no Palácio das Princesas. No momento em que os soldados do Exército nos pararam, eu não sabia se os livros estavam no Prefect ou não. Graças a Deus não estavam. Se estivessem, ia dar certinho...



*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Pernambucana de Letras Jurídicas.


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FERIADO PROLONGADO


Publicado no JC em 22/09/10





    Aproveitei o feriadão do 7 de Setembro para matar as saudades de alguns filmes. Nada de filme-cabeça. Filme maneiro, interessante, aquele de que gostamos, quando rapazes, mas que merece uma releitura. E saí locando alguns deles. O primeiro foi Advinhe quem vem para o jantar, com Spencer Tracy, Sidney Poitier, Katharine Hepburn, Cecil Kellaway, Beah Richards e Katharine Houghton nos papéis principais, com direção de Stanley Kramer.

   Recordo bem desse filme (1967), que vi no Cine Boa Vista, por uma coincidência. É a história de Joanna, uma garota branca, namorada de um médico negro. Os pais dela se diziam antirracistas, mas quando viram o negão chegar para jantar, “caíram na real”, e o negócio complicou. A coincidência é que naquele ano corria o boato de que Gilberto Freyre, ferrenho defensor do luso-tropicalismo e igualdade racial, ao ser perguntado por um jornalista americano, que o entrevistava em seu belo casarão de Apipucos, se consentiria que sua filha casasse com um negro, ele respondeu que preferia que isso não acontecesse, não por preconceito dele, Gilberto, mas da sociedade pernambucana. A mesma desculpa dos pais de Joanna.

   Passei Bravura indômita (1969), dirigido por Henry Hathaway, com John Wayne, Glen Campbell, Kim Darley, Robert Durvall e Dennis Hopper. E Butch Cassidy (1969), dirigido por George Roy Hill, com Paul Newman, Robert Redford, Katerine Ross e Strohes Martin, baseado em fatos verdadeiros. Ao contrário da ultraviolência típica de outras fitas de foras-da-lei, da época, esta apropria-se de Jules e Jim – uma mulher para dois, e de Bonnie e Clyde – uma rajada de balas, e utiliza uma mistura irônica de comédia escrachada e ação de bang-bang convencional para criticar os clichês do gênero “cowboy”.

   Deu tempo de assistir também, comemorando a independência do Brasil, Cidadão Kane, Cidade de Deus, Dança com lobos e Depois do vendaval. Do lote que aluguei, faltou ver Duelo ao sol, Estranho no ninho e Salário do medo. Não encontrei nas locadoras as aventuras de Hobin Hood, com Errol Flynn, que assisti, menino, no Jandaia, em Salvador, mas o ensaísta Nivaldo Mulatinho, cinéfilo de primeira, prometeu me emprestar, frisando que tinha dois vês – “vai e volta”.

   Aluguei ainda o Tesouro de Sierra Madre, de John Huston (1948), com Humphrey Bogart, que vi no Rex, de Natal, sem ar-condicionado, ventiladores quebrados, a plateia fumando desbragadamente, imitando Bogart, a fumaça do cigarro embaçando e prejudicando a projeção, a maior esculhambação. É outro filme que não esqueço, porque saímos do Rex, tomamos caldo-de-cana, com pão crioulo, no Grande Ponto, fomos dançar na matinê do Aeroclube, ao som dos primeiros baiões gravados por Luiz Gonzaga e maravilhosos boleros de Agustín Lara e Ernesto Lecuona.

   Em 1954, Os sete samurais, no São Luiz, e em 1959, Ben-Hur, no Moderno, se não me engano. E vamos parar por aqui. Aproveito a oportunidade que me concede Ivanildo Sampaio para pedir aos meus queridos amigos e prováveis inimigos, a quem os emprestei, que me devolvam, por favor, Tempos modernos, Dois caipiras ladinos, Laurence da Arábia e Quanto mais quente melhor. De nada...



*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.



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HERÓIS DE QUÊ?




Publicado no JC em 15/09/10



 
   Os irmãos Marcelo e Valfrido Lira, acusados de terem matado as adolescentes Tarsila Gusmão e Maria Eduarda Dourado, há cerca de sete anos, foram absolvidos (4 x 3) pelo júri popular de Ipojuca, recentemente. Pelas inusitadas circunstancias que envolveram o inquérito policial e, em conseqüência, o processo criminal, esse foi um dos casos de maior repercussão de que se tem notícia, em Pernambuco, comparável ao trucidamento do Padre Henrique, aos assassinatos do Procurador Federal Pedro Jorge, envolvendo o major Ferreira, e do bispo de Garanhuns pelo Padre Hosana.



   Antônio de Brito Alves, nosso professor de Criminologia da Faculdade de Direito da Católica, já dizia, pelos idos de 60, que quanto mais mexido o inquérito policial, melhor para os indiciados. E no inquérito do homicídio dessas meninas de Serrambi, o promotor Miguel Sales devolveu os autos quatro vezes, ao delegado que o presidia, pedindo novas diligências, favorecendo, segundo a tese de Brito Alves (consciente ou inconscientemente)os réus.



   Advogado militante, não posso nem vou opinar sobre o mérito da questão. Minhas considerações sobre o seu julgamento resumem-se apenas às informações divulgadas pela imprensa. De princípio, acho que o júri deveria ter sido realizado aqui, no Recife, porque já havia evidencias e indícios de que, em Ipojuca, terra dos réus, as pressões sobre os jurados seriam grandes. O fato de os jurados serem pessoas bem situadas social e profissionalmente não os protege nem exime de coação de todo tipo. Falam até em parentes e amigos dos réus entre os jurados, o que seria mais difícil de acontecer, se o júri fosse no Recife.



   Na hipótese de o TJPE decidir por novo julgamento, acatando apelação do Ministério Público e dos assistentes da promotoria, para desaforamento do processo para outra comarca, de pouco valerá cumprir o art. 424 do CPP, que se refere “à comarca mais próxima ao distrito da culpa”, porque aí o júri se realizaria, salvo melho juízo, no Cabo, onde os réus dispõem da mesma influência que em Ipojuca.



   Há de se lamentar a indevida ingerência do promotor Miguel Sales, na tramitação da peça policial e no decorrer do processo. O dever do promotor, parte na ação criminal, é pedir a condenação ou a absolvição do réu, se assim o entender. Manter contacto pessoal ou telefônico com suspeitos, é comportamento aético, promiscuo e ilegal.



   De se estranhar ainda nesse tumultuado e nebuloso seguimento: a) que os jurados não tenham levado muito em consideração os antecedentes criminais dos kombeiros, apontados como tendo estuprado quatro mulheres, matado uma cunhada de Marcelo e um tal de “Galego”, cobrador da Kombi deles, em Ribeirão, com os mesmos métodos e características de “desovar” cadáveres; b) que a perícia dos corpos de delito tenha sido feita com tanto atraso e que a polícia não tenha conseguido provas mais robustas da culpabilidade dos réus ou de outros agentes, caso existam; c) que a mãe de uma das vítimas desse crime covarde e hediondo tenha se regozijado com a absolvição dos acusados de terem matado sua filha, mesmo porque o apertado placar de 4 x 3 da absolvição aponta que pelo menos três dos jurados votaram pela condenação. Se Marcelo e Valfrido foram absolvidos por “falta de prova”, que prova concreta e certeza tem essa mãe da inocência deles? Considerando-se que a sentença não transitou em julgado, por se encontrar em grau de recurso, podendo ser reformada, resultando na condenação dos apelados em novo júri, a satisfação dessa sofrida senhora é, pelo menos, precipitada e intempestiva, para não dizer, com todo respeito, lamentável. Após o resultado, os réus foram carregados em triunfo, pela galera de Ipojuca, como heróis. Heróis de quê? Não está havendo uma subversão de valores na nossa sociedade? Devemos isso à cultura da impunidade, à ignorância dos manifestantes ou às duas coisas juntas?



   Quem matou Tarsila Gusmão e Maria Eduarda Dourado? Cabe ao Estado, enquanto organização social e política, responsável pelo conjunto de serviços gerais e destino de uma nação, dar a resposta verdadeira e exata. É o que esperamos, pois, para tanto, ainda tem tempo, maré e vento.



*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Pernambucana de Letras Jurídicas.


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AMARGURA

Publicado no JC em 08/09/10




    Na minha crônica Tarde demais, termino transcrevendo verso de um vate recifense cujo nome não me lembrava. Acabo de receber e-mail de Liliana Falangola, timoneira do Catamarã Maurício de Nassau, que costuma singrar as águas mansas do Capibaribe, ao cair das tardes dos sábados, com o nome do seu autor, Tupan Sete, e o poema completo: “Aqui, o corvo-azul da suspeição/ apodrece nas frutas violetas,/ e a febre escusa, a rosa da infecção,/ canta aos tigres de verde e malhas pretas./ Lá, no pelo de cobre do alazão,/ o bilro de ouro fia a lã vermelha./ Um pio de metal é o gavião/ e são mansas as cabras e as ovelhas./ Aqui, o lodo mancha o gato pardo:/ a lua esverdeada sai do mangue/ e apodrece, no medo, o desbarato./ Lá, é fogo e limalha a estrela esparsa:/ o sol da morte luz no sol do sangue,/ mas cresce a solidão e sonha a garça.”

   Não tive o prazer de conhecer Tupan Sete, mas sem ser crítico literário, ouso dizer que sua lírica, eivada de amargura, sofre influência do bardo paraibano de minha admiração, Augusto dos Anjos, também de admiração do escritor Luiz Carlos Albuquerque. Amargura e sensibilidade próprias dos poetas.

   Estive relendo esta semana Os lusíadas, e vejo que Camões passou muito tempo na África e na Índia, queixando-se, em versos, das dificuldades para sobreviver, do azar e das injustiças que sofrera. Certa vez, um amigo o encontrou perdido e liso em Moçambique e o ajudou a voltar para casa. E pensar que ele é o maior poeta da língua portuguesa!

   Desgostoso de tudo, Michel de Montaigne escolheu curtir uma espécie de exílio. E Torquato Tarso trilhou uma via-crúcis de perambulações em hospitais e cadeias, até receber atenção do mundo artístico com o poema Rinaldo. O nosso Cervantes resistiu a três ferimentos a bala, tendo um deles aleijado sua mão esquerda. Vendido como escravo na Argélia, cumpriu cinco anos de cativeiro. E esse soldado autodidata de existência atribulada, influenciou Defoe, Dostoievski e Joyce. Dom Quixote permanece como uma das poucas obras-primas da literatura a alcançar a eternidade. Perguntaram a Jorge Amado o que havia de novo no romance universal, ele respondeu Dom Quixote.

   Lope de Vega, um dos autores preferidos de Renato Carneiro Campos, abandonou os estudos para ir atrás de uma mulher casada, uma “beleza remota”, que teria numerosas sucessoras. Sua saga amorosa foi variada e polêmica. Cafetão, foi preso e condenado ao desterro por escrever ataques ferozes contra a bela atriz Helena Osório, que lhe dera o fora. Terminou fugindo com uma menina de dezesseis anos.

   De acordo com relatos contemporâneos, Francisco de Quevedo tinha natureza impulsiva e tendência à perversidade, e ganhou fama pelos comentários cáusticos a respeito da aparência das pessoas. Apesar de ter um pé torto e miopia, agredia outros homens, compondo sátiras devastadoras ou paródias.

   Uma dica: terminei ontem A vida é sonho, de Calderón de La Barca, e estou convencido de que Percy Bysshe Shelley tem razão ao considerá-lo o maior dos modernos dramaturgos depois de Shakespeare.



*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, a União Brasileira de Escritores-UBE/PE.


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TARDE DEMAIS


Publicado no JC em 01/09/10

   Cartas do pintor José Cláudio.

   Escreve José Cláudio, do alto de seu charmoso bangalô e ateliê encravados ao pé da colina da Igreja e Mosteiro Nossa Senhora do Monte, das freiras beneditinas, em Olinda, bangalô cercado de luxuriante vegetação (gostou do luxuriante, Zé?) - o implacável escritor Fernando Monteiro adorou a palavra escol, que usei na minha última crônica, neste matutino. Gostou do implacável, civilista Fernando Lig-Lig Wanderley? Hoje estou com a gota.

   Pois José Cláudio diz em sua missiva (tá danado!) datada de 13 de agosto do corrente ano, que mandou a crônica O solitário do Almirante Jaceguay, que continha parte da letra do samba Praça Clóvis, de Paulo Vanzolini, na voz de Chico Buarque, para Paulo, seu autor. Na mesma carta José Cláudio comunica que tem recebido telefonemas perguntando se o artista plástico que pintou a tela à qual me refiro em A vida como ela é, recentemente publicada neste JC, é ele. Não, Zé, poderia ser, mas não é. Mesmo porque, entre o quadro de uma mulata escultural nua, de costas, e suas resplandecentes telas de sangues-de-boi, galos-de-campina e canários-da-terra, docemente empoleirados nos galhos das árvores, das caatingas, mata atlântica e brejos do Nordeste, sinto dificuldade em escolher as mais bonitas e representativas da nossa - como direi? - nacionalidade. No P.S., José Cláudio recomenda o filme “belíssimo”, Um homem de moral, sobre Vanzolini, à venda em importante livraria da cidade.

   Em outra carta, ele testa minha querida estagiária Cacilda Matias: achar, na internet, o soneto a que pertencem estes tercetos: “Nunca mais nos falamos... vai distante.../ Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante/ Em que seu mudo olhar no meu repousa,/ E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,/ Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,/ Mas que é tarde demais para dizê-la...”

   Cacilda pesquisou, com sua proverbial competência, e encontrou o poema História Antiga, de Raul de Leoni (1895/1926), que agasalha os tercetos, transcritos por José Cláudio e começa assim: “No meu grande otimismo de inocente,/ Eu nunca soube porque foi... um dia,/ Ela me olhou indiferentemente,/ Perguntei-lhe porque era... Não sabia.../ Desde então transformou-se de repente/ A nossa intimidade correntia/ Em saudações de simples cortesia/ E a vida foi andando para a frente...”

   Li Raul de Leoni, na mocidade, influenciado por Manuel Bandeira, seu admirador, mas não conhecia esse lindo soneto. Leoni é poeta esquecido, não se fala mais nele, nem no grande Cornélio Pena, nem em Cruz e Souza. Oh, meu Deus! Afinal, estamos na segunda era Dunga. Ivan Brondi me disse que bateu pelada com Dequinha, o “Passe de Veludo”, este já veterano, e admirou sua categoria. Pois é. Vi Dequinha jogar pelo ABC, de Natal, no estádio Juvenal Lamartine, nos fins de 1948. 0 típico amarelinho nordestino, buchudo, pernas finas e cabeça chata, mas que classe! Oh, meu Deus!

   Falando sobre a simplicidade e beleza dessa poesia de Raul de Leoni, com José Cláudio, me lembrei do verso de um humilde bardo pernambucano que os beletristas recifenses levavam no debique, até que um dia ele concluiu um poema assim: “(...) Lá, onde mora a solidão e sonham as garças...” E os deboches cessaram.

*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.


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UM HOSPITAL CHARMOSO


Publicado no JC em 25/08/10

   Oxente! E existe hospital charmoso? - Pergunta Francisco Jardim, delegado de escol, cidadão de categoria.

   Existe, sim: o Jayme da Fonte. Não conheço hospital mais aconchegante e simpático do que o Jayme da Fonte, talvez por me sentir sentimentalmente ligado a ele. Fui morar na velha Capunga em 1953. Dois anos depois, o médico Jayme da Fonte, figura lendária do bairro, fundou o hospital com seu nome. Empresário visionário e à frente do seu tempo, Jayme viu que além do antigo Pronto Socorro, estabelecido na Rua Fernandes Vieira, e antecessor do Hospital da Restauração, da rede pública, não havia no Recife unidade hospitalar particular com atendimento de urgência, e fundou o Jayme da Fonte. Interessante é que assim o fez contra a opinião unânime da família, que achava a ideia uma temeridade.

   Inaugurado em 1955, o Hospital Jayme da Fonte passou a ser o da moda no Recife. Quem tinha bom poder aquisitivo corria para sua emergência. Mas Jayme, homem de bom coração, não deixava de atender os humildes necessitados, um dos motivos que o fizeram estimado na Capunga. Lembro que certa vez (faz muito tempo), um amigo meu, levou um tiro de um soldado da Rádio Patrulha, em pleno salão do Country, num grito de Carnaval, foi socorrido imediatamente pelo clínico geral Domingos Cruz (pai do cardiologista Henrique Cruz), que recomendou sua remoção para o Jayme da Fonte, onde foi operado pelo cirurgião Eduardo Wanderley, com sucesso, recebendo alta uma semana depois.

   O hospital progredindo, inauguraram, no mesmo prédio, a Farmácia Jayme da Fonte. Era a primeira farmácia da cidade aberta vinte quatro horas por dia. O engenheiro civil capunguense Paulo Martins, intermediou a autorização com Oscar Amorim, presidente da Associação Comercial, e Cid Sampaio, presidente da Federação da Indústria, para permitir que a farmácia funcionasse sem porta. Nessa farmácia, comprei muitos tubinhos de Perventin, as célebres “bolinhas”, para virar a noite acordado, estudando para o vestibular de Direito da Federal, com Artur Coutinho, Ricardo de Paula Lopes, Fernando Gondim e Olympio Costa Júnior, no terraço de nossa casa.

   Paulo da Fonte, irmão de Jayme, e excelente figura humana, abriu, junto à farmácia, a Livraria Paulo da Fonte, que, além de livros, vendia jornais do Sul, atraindo clientes da “inteligência” recifense que por ali passavam, ao cair da tarde, para ler notícias frescas e importantes do Brasil e bater papo com Paulo, de quem me tornei amigo, e Renato Carneiro Campos, também morador das Graças, o elegeu “Prefeito da Capunga”, em memorável crônica no DP.

   Passados 55 anos de seu nascimento, o Hospital Jayme da Fonte, dispondo de urgência cardiológica, clínica e cirúrgica, serviços de imagem, centro diagnóstico para consultas e exames, bloco com seis salas de cirurgia, UTI geral e de dor torácica, novos apartamentos com WiFi Zone, extensa rede de convênios e amplo estacionamento próprio, equipe médica e de enfermagem competentes, firma-se, cada vez mais, no cenário ainda precário e deficiente da rede hospitalar do Estado, sob a superintendência dinâmica e serena do médico Antônio da Fonte, filho de Jayme, conhecido na Av. Beira-Rio da Madalena, onde caminha diariamente, como Comandante Antônio, ou Tatá, para os íntimos, tudo sob as bênções da matriarca do clã, Dona Creuza Meira da Fonte, mais lúcida do que nunca.



*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Associação Brasileira de Imprensa-ABI.



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QUALIDADE DE VIDA

Publicado no JC em 18/08/10

   Um neurocirurgião me contou que, dirigindo um carro alugado na cidade de Colônia, Alemanha, parou em cima da faixa de pedestre quando o sinal fechou. Veio o guarda, “que parecia um guarda-roupa”, pediu-lhe os documentos e, quando viu que sua habilitação era do Brasil, irritou-se: “Brasil! Brasil! Logo vi!” Tirou uma caderneta do bolso, aplicou a multa e ameaçou: “Da próxima vez, o senhor será preso, e seu carro, rebocado.”

   Pelos anos 60, morava no Farol da Barra, na Bahia, um coronel do Exército muito popular conhecido como coronel Lúcio. Ele me revelou que quando o general Amaury Kruel, ex-comandante do 2º Exército, era major e foi fazer um curso de extensão nos Estados Unidos, estava trafegando em alta velocidade, numa ponte, e foi seguido por dois policiais em motocicletas que o obrigaram a parar. Ato contínuo, quando um deles começou a preencher o talão de multa, solicitou o documento de identidade de Kruel, e, ao verificar que se tratava de oficial do Exército, disse-lhe que a multa seria acrescida de vinte por cento, “tendo em vista ser ele autoridade”, de acordo com o Código de Trânsito de lá.

   A artista plástica Denir de Melo, residente na Suíça, veio passar férias no Recife e ficou perplexa com as barbaridades cometidas pelos motoristas daqui. E me disse que, certa vez, entrou, montada na sua bicicleta, numa contramão de Zurique, logo veio o soldado, multou-a e ameaçou apreender a bicicleta se ela repetisse a infração. Ela tem dupla nacionalidade: brasileira e suíça, mas, na hora, apresentou a identidade brasileira, numa tentativa de se livrar da sanção, o que não colou - e recebeu de volta do inspetor um risinho de deboche.

   São muitas as histórias de brasileiros que sofrem constrangimento no exterior por desrespeito à lei do trânsito. Infrações que aqui não têm o menor valor, na Europa e nos Estados Unidos são consideradas gravíssimas.

   Segunda-feira retrasada, dia 09, à noite, levei uma hora e quarenta minutos da Rua da Aurora para a Avenida Beira-Rio, na Madalena. Estava chuviscando e basta isso para o trânsito parar - trechos onde os automóveis, simplesmente, não andavam. Não dá para passar nem segunda. Nesses momentos não se vê um guarda, e os sinais começam a quebrar. Recentemente ouvi entrevista em uma rádio de um engenheiro de trânsito do Detran. Ele confessou que o caos no trânsito do Recife tende a piorar com a matrícula de cerca de cem veículos por dia.

   Subo ao 26º andar do edifício onde moro, me espanto com a quantidade de prédios em construção nos bairros da zona norte, e me pergunto quantos automóveis serão acrescentados às ruas do Recife quando esses edifícios ficarem prontos. Não conheço nenhum planejamento técnico para enfrentar o grave problema. O leitor conhece?

    Quando se fala em qualidade de vida, considera-se, entre outros fatores, morar bem e o mais perto possível do trabalho. Casa Forte, por exemplo, ainda é aprazível, embora muito sacrificado com a febre imobiliária. Das seis e meia às oito da manhã, o morador de Apipucos, Dois Irmãos, Casa Forte, Monteiro e Poço da Panela gasta quanto tempo para chegar ao Marco Zero? E quem reside em Piedade e Boa Viagem? Quantos sinais e engarrafamentos esse motorista enfrenta de sua casa para o centro da cidade?

*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Pernambucana de Letras Jurídicas.


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A VIDA COMO ELA É




(Publicado no JC em 11/08/10)



   Ele parou o carro e perguntou para onde ela ia. Ela respondeu que ia pra casa, no Arruda. Ele ofereceu carona e ela disse que seu Opala era muito bonito, mas que não o conhecia. “E se eu passar amanhã aqui à mesma hora, você aceita o bigu?” “Se passar amanhã, aceito.”

   O caso começou aí, exatamente na Praça Chora-Menino, e durou cerca de dois anos. Ela era modelo, elegantíssima, e ele médico. Naquela época, ainda não existiam bons motéis, dormiram a primeira noite num quarto do último andar do Hotel Central. Era uma sexta-feira, e, no sábado, foram para Maria Farinha, de lá, para Itamaracá. Depois de algum tempo, a suspeita: teria ela outro homem? Ela confessou que tinha um amante rico que a sustentava. “Se seu amante lhe dá tudo, por que você o trai?” “Porque ele não me satisfaz sexualmente. E por que você trai sua mulher, se é casado?”

   Os meses se consumindo, um dia ele foi a uma exposição de pintura, na Rua do Bom Jesus, e ao fixar-se em um quadro, reconheceu-a pousando nua, de costas, as curvas de seu corpo de mulata realçadas. Uma bela tela. Seu sentimento imediato foi um misto de enlevo, despeito e saudade. Confirmou o que ela já havia lhe dito. Que costumava pousar despida para famoso artista plástico pernambucano.

  No mês de abril ele resolveu acabar o romance, sem motivo aparente. Quando lhe comunicou isso, ela tirou a roupa, pegou uma garrafa de álcool, uma caixa de fósforos e sentou-se no travesseiro da cama, olhando-o de forma esquisita. Ele entrou em pânico e desmentiu sua intenção. Mas uma tarde o caso terminou, como acontece com todos os casos, e atravessaram muitos invernos sem se ver.

   Em maio deste ano, ele ia para a Rua Nova, pela ponte da Imperatriz, quando a avistou caminhando no sentido contrário. Ao se cruzarem no meio da ponte, fingiram não terem se visto, e prosseguiram andando lentamente. Ao chegar no fim da ponte, prestes a alcançar a Rua Nova, ele parou e olhou para trás. Ela também estava parada na Rua da Aurora, e quedaram assim, um olhando o outro, à distância, por longo minuto que lhes pareceu uma eternidade. Depois, foram em frente, a lua cheia nascendo no alto-mar, clareando o céu azul, sem nuvens.



*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Olindense de Letras.



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O MAESTRO CUSSY DE ALMEIDA


(Publicado no JC em 04/08/10)   

   Corria o ano de 1949, eu morava em Natal e tinha uma namoradinha (namoro de menino) chamada Tereza Neuma Ramalho. Sei seu nome completo porque o primeiro amor ninguém esquece. Às três horas da tarde, minha mãe me convocava para a tarefa do Colégio Santo Antônio, dos irmãos Maristas. Enquanto eu não desse a lição, ela não liberava a paquera. Dada a lição, eu tomava banho, trocava de roupa, vestia calças curtas, me perfumava e aplicava Gumex no cabelo (“Dura lex, sed lex, no cabelo só Gumex”, anunciava Ary Barroso em suas vibrantes e passionais transmissões na TV Tupi do Rio de Janeiro), montava na bicicleta sueca, Centrum, e ia me encontrar com Cussy de Almeida. Cussy pegava sua Monark e saíamos alegres, pelas ruas do Tirol, para ele encontrar sua musa inspiradora, prima de Neuma, cujo nome esqueço, que já estava com Neuma, nos esperando na Pracinha Pedro Velho.


   Em 1950, o natalense Cussy, veio morar no Recife, onde o reencontrei em 1953, renovando nossa amizade, porque nada mais puro do que amizade da infância. Brilhou como principal violoncelista da Orquestra Filarmônica da Califórnia, e em 1958, após obter no ano anterior o primeiro prêmio no concurso para jovens solistas da Prefeitura Municipal do Recife, estabeleceu-se em Paris e estudou com o professor René Benedetti, do Conservatório Superior de Música, tendo o privilégio de conviver com Heitor Villa Lobos que o considerava “um violino de esperança”. A partir de 1959, recebeu, após exame de admissão, bolsa de estudos integral no Conservatório Superior de Música de Genebra, na Suíça. Nos quatro anos seguintes, obteve o diploma profissional de violino, que lhe valeu o Albert Lulin - atribuído ao aluno que mais se destasse pelos seus dotes artísticos e capacidade de trabalho. Dois anos depois, recebeu o prêmio da Alta Virtuosidade, daquela escola. Foi spala e solista da Orchestre des Jeunesses Musicales Suisse, por quatro anos, e também violinista da Orchestre de la Suisse Romande, à época dirigida por Ernest Ansermet. Finalista do Concurso Internacional de Música da Câmara de Munique, na Alemanha, voltou ao Brasil consagrado como um dos seus maiores instrumentistas.

   Em 1º de junho de 1957, os 15 anos de minha irmã, Maria Lúcia, e as bodas de prata de meus pais, Carlos Koch e Amália Maria, foram abrilhantados, no Palácio de Alumínio, esquina da Conde da Boa Vista com a Rua da Saudade, pelo conjunto de cordas de Cussy.

   Diretor do Conservatório Pernambucano de Música, negou um pleito de uma professora, tia minha. Não fiquei magoado, entendi o seu investimento na reestruturação da instituição, priorizando, sob sua ótica, o interesse público. Nosso último encontro foi no auditório da nossa Academia de Artes e Letras de Pernambuco, quando ele, ao solar em seu Estradivário Assum Preto, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, piscou o olho pra mim, sabendo que gosto desse baião. Bastou essa interpretação para ser ovacionado pela platéia lotada. Ao lhe perguntar, naquele dia e nas últimas palavras que trocamos, se não se achava fisicamente parecido com Tom Jobim, riu: “O próprio Tom achava”. E nos despedimos com forte abraço, sem saber que era para sempre. Sessenta e um anos de estima não são 61 dias.

*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.


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O SOLITÁRIO DO ALMIRANTE JACEGUAY

(Publicado no JC em 28/07/10) 

   Ele desembarcou do paquete Almirante Jaceguay, do Loyd Brasileiro, após perfeita manobra de atracação do prático da barra Luís Augusto, cumprimentou os comandantes Joése Leandro e Jorge Lara, e dirigiu-se, ávido, ao Silver Star.

   A radiola de ficha tocava Praça Clóvis, de Paulo Vanzolini, na voz de Chico Buarque: “Na Praça Clóvis, minha carteira foi batida. Tinha vinte e cinco cruzeiros e seu retrato. Vinte e cinco, francamente, achei barato pra me livrarem do meu atraso de vida.” Falar nisso, pensou ele, e apalpou a carteira de cédulas, no bolso direito traseiro. E lembrou que nela estava o retrato da ex-namorada. Mas se já não namoravam, pra que guardar aquele negócio ali? Melhor que a foto tivesse sido furtada no Marco Zero. Ou no camarote do Almirante Jaceguay. Antigamente era camarote, hoje é cabine. Como ele gostaria de viajar no maior transatlântico do mundo, esse de 150 mil toneladas, que faz a linha Miami-Bahamas, na América Central, feito Joseph Conrad, que percorreu as ilhas do Pacífico Sul comandando o veleiro Libertad.

   Envelhecida e acabada, Odete entrou no Silver Star, com um marujo inglês. A última vez que ele a vira foi no 28, bebendo com José Maria Lubambo. Naquele mesmo dia, Hugo da Peixa e Djalma Procópio fizeram uma farra de arrombar. Rafael Schulman se aproximou de sua mesa, puxou uma cadeira, sentou, e foi logo dizendo que apesar da interpretação de Besame Mucho, por Lucho Gatica, ser excelente, prefere a do cantor português Francisco José. E que as de Maysa e Connie Francis são também muito boas. Rafael Schulman tem 50 gravações de Besame Mucho, bolero que Consuelo Velazquez teria composto aos treze ou dezesseis anos de idade.

   O solitário do Almirante Jaceguay pediu vodka polonesa com suco de abacaxi e pedras de gelo, mexeu tudo com o dedo indicador da mão direita e botou uma ficha na radiola. Caiu Famoso, de Ernesto Nazareth, com Garoto, no violão, e surgiu Clóvis Pacheco para dizer que o melhor choro de Nazareth é Odeon, gravado por Pixinguinha, em 1971. Talvez pela qualidade do som, o bar foi se enchendo de gente e tocaram O pé de anjo e Fala meu louro, de Sinhô, ambos criados por Lira Carioca, Clara Sandrovi e Marcos Sacramento.

   O poeta e escritor Fernando Monteiro pegou o microfone e disse que “Waldick Soriano – Sempre no meu coração”, da belíssima Patrícia Pillar, é um belo filme, com o que concordou o solitário do Almirante Jaceguay. Foi quando Cícero Moraes sugeriu, ao dono do Silver Star, renovar o repertório da radiola de ficha, com músicas de Anísio Silva, Roberto Luna e Alcides Gerardi.

   De repente, o Almirante Jaceguay apitou e começou a desatracar. Nuvens de tempestade se formavam no céu escuro, e a noite de trevas virou breu. O mar ficou encapelado e as estrelas desapareceram, encobertas por densa serração. Alguns passageiros desistiram da viagem, e a madrugada chegou mais tarde, banhando o Silver Star com tímidos raios de sol e o canto nublado dos pássaros. Logo, o cais do porto despertou para mais um dia de trabalho árduo de seus habitantes, locatários e estivadores, esquecendo suas prostitutas, mendigos e travestis. E ninguém soube mais notícias do solitário do Almirante Jaceguay, que cruzou a barra e passou ao largo do Lameirão, expelindo rolos de fumaça preta de sua chaminé vertical, rumo ao alto-mar.

*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da União Brasileira de Escritores-UBE/PE.


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VITÓRIA DO FUTEBOL




(Publicado no JC em 21/07/10) 



     Esta crônica encerra a série das que escrevi aqui sobre a Copa.

     Penso que os amantes do verdadeiro futebol estão de alma lavada com a conquista da Espanha. Talvez isso venha livrar o futebol das retrancas, do jogo bruto e dos esquemas medíocres. Dos Dungas da vida. Agora já não há mais a desculpa de que é melhor ganhar jogando feio do que perder jogando bonito. O time espanhol jogou bem e de maneira eficiente, mas o grande segredo desse selecionado responsável pelo retorno da alegria e do talento ao “popular esporte bretão” foi armar meio-de-campo habilidoso, coisa que o Brasil nunca mais teve depois de 1982.

     Tenho a consciência limpa porque não estou dizendo isto agora. Todos os meus artigos, a partir dos escretes formados por Parreira e Dunga, duas nulidades, tocaram nesse assunto. Não se vai a lugar algum sem um meio-campo bom, que construa, que alimente o ataque com passes certeiros. E o quadro espanhol caprichou justamente no toque de bola e na disciplina, com lealdade. O selecionado holandês me surpreendeu pela catimba. Agora os europeus não podem mais falar da violência dos sul-americanos. Os laranjas deram uma demonstração de antifutebol, tentando intimidar o time espanhol com entradas maldosas, sob as vistas complacentes de um juiz tolerante e incompetente. Esse árbitro poderia ter influenciado decisivamente no resultado da partida, eis que os holandeses pisaram o campo decididos a coagir os espanhóis na base da botinada. Repita-se: a vitória da Espanha foi a vitória contra a burrice, a desonestidade, a falta de ética, a carência de fairplay não somente dos holandeses mas de todos os times que praticam o futebol retranqueiro e grosseiro.

     Para provar tudo isso, a estatística registrou 28 faltas da Holanda. Pelo menos dois holandeses deveriam ter sido expulsos por lances violentos. Vitória da arte, derrota da boçalidade. O Brasil somente voltará a praticar seu verdadeiro futebol e não esse troço apresentado na Copa e criticado por Cruyff e Beckenbauer, quando escalar uma meia-cancha de classe e não de pernas de pau, brucutus e desajustados tipo Felipe Melo. Bom é jogar limpo e bonito. O ideal de quem tem um mínimo de sensibilidade. A segunda era Dunga acabou.

      Capítulo à parte nessa Copa foi a desastrosa arbitragem. Não me lembro de nada pior. A FIFA tem que tomar providências urgentes e sérias para 2014.

      P.S.: Agradeço a Paulo Gadelha a “História de Todas as Copas (1930/2006)”, coletânea de artigos escritos por ele no Correio da Paraíba, entre 02 de maio e 06 de junho de 2010. São crônicas com informações importantes sobre a trajetória dos selecionados brasileiros nesse período. Leitura excelente e indispensável para quem gosta de futebol.



*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Federação Internacional dos Jornalistas


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ESQUECENDO A COPA


(Publicado no JC em 14/07/10)    

   Fui esquecer a Copa em Gravatá. Falar nisso, recebi e-mail de uma gaúcha querida dizendo que ficou de cabeça inchada, depois de derrota pra Holanda, e achou que ela duraria quatro anos, “mas logo sarou com um bom remédio (ou consolo) - o resultado do jogo da Argentina...”

      Comprei uma coleção de CDs de compositores brasileiros, quatro livros de Zé Lins do Rêgo, e subi a serra. O primeiro cd que ouvi foi o de Sinhô. Que beleza! Que personalidade complexa e fascinante! Que letras incríveis! O segundo, Jackson do Pandeiro. Sua interpretação de Canto da Ema é fantástica, duvido que alguém possa ultrapassá-la. Somente três cantores rivalizam com Jackson do Pandeiro na divisão do ritmo: Orlando Silva, Lúcio Alves e Miltinho. Assim mesmo, sou mais (na divisão do ritmo) esse paraibano genial, que morreu pobre. Agora sei porque Luiz Gonzaga foi tão cauteloso se recusando a participar de qualquer show com ele: “Dois bicudos não se beijam”.

      Levei também o esquecido Ataulfo Alves e Jacob do Bandolim. Outro dia, li, não me lembro onde, comentário de crítico estrangeiro dizendo que Jacob do Bandolim foi o maior instrumentista popular do século 20. Há intérpretes e músicos assim, que, depois de gravarem uma música, ninguém deveria gravar mais. Existem muitas gravações de Ronda, de Paulo Vanzolini, feitas por grandes intérpretes. Nenhuma delas chega aos pés da de Carmem Costa. Quem gravaria melhor Mensagem do que Isaurinha Garcia? Ninguém gravou Maria Betânia, de Capiba, igual a Nelson Gonçalves. Ninguém gravou Rosa e Carinhoso melhor do que Orlando Silva. O lídimo intérprete de Lupicínio Rodrigues foi Jamelão, um cantor estupendo. E a principal intérprete de Noel Rosa foi Marília Baptista e não Aracy de Almeida, como muitos dizem. Mário Reys foi quem melhor recriou a obra de Sinhô. E ninguém cantou Dorival Caymmi melhor do que ele mesmo. Algumas gravações de Sílvio Caldas, principalmente Favela, de Roberto Martins e Waldemar Silva, continuam insuperáveis. E o que dizer de Ave-Maria, na voz personalíssima e inconfundível de Augusto Calheiros, a Patativa do Norte, e de Besame Mucho, de Consuelo Velazquez, por Lucho Gatica?

      Cheguei no sítio, a lua cheia estava bonita, armei a rede na varanda, liguei o som baixinho, para ouvir os sambas de Ismael Silva, e abri Meus Verdes Anos. Ainda na sacola, Menino de Engenho e Doidinho. Nada como a releitura e como uma boa música e um autor de estilo maneiro e coloquial, para esquecer as brutalidades de Felipe Melo, as grosserias de Dunga, figura tremebunda, autêntico nipo-nazi-fascista, de uma burrice estúpida e petrificante. O futebol brasileiro não merecia isso, mas o culpado foi quem o convidou, e que se chama, com licença da palavra, Ricardo Teixeira, homem sem mácula. Perder a Copa longe daqui não é tão traumático como perder aqui dentro. E a próxima é no Brasil. Que os cartolas evitem enveredar pelo terreno escorregadio da filosofia especulativa e ouçam a voz do povo e sábias conversas de botequim, para escalar o verdadeiro selecionado brasileiro.

*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Associação Brasileira de Imprensa-ABI.



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FIM DE SEMANA

(Publicado no JC em 07/07/10)

     Um casal de amigos meus foi passar o fim de semana, coincidindo com o São João, em Gravatá, com sua filhinha de 3 anos. Saíram daqui do Recife no dia 23, duas horas da tarde, e pegaram um engarrafamento gigantesco, da sede do Sport até o Curado. Só dava para passar primeira. E lá pras tantas, a criança, impaciente, começou a chorar e pedir para ir ao sanitário - mas cadê sanitário? Resolveram parar e botar a menina para fazer xixi no canteiro que divide a avenida. A menina estranhou, não conseguiu verter água e voltou pro carro chorando e esperneando. Pouco depois, fez pipi dentro do carro, molhando o banco traseiro e deixando entranhado aquele cheirinho característico.

       Uma hora após, o cônjuge varão, como diria o advogado João Lapenda, começou a sentir dor de barriga e lembrou-se que na véspera jantara sarapatel. Fez os cálculos e achou que poderia atingir Gravatá. Calculou mal, a cólica foi apertando. Pensou em voltar pra casa, sendo a primeira vez que lhe ocorreu aquela frase “lar, doce lar”. Ou, como se diz em Natal, “que saudade de casa!” Mas voltar como? O engarrafamento era tão grande que ele não tinha como retornar. E, ao comunicar à distinta esposa sua intenção de voltar pra casa, ouviu dela um firme e peremptório “nem pensar!” Que veio acompanhado de catilinária própria dessas ocasiões: “Será que não tenho direito de descansar um mísero fim de semana? Minha vida é cozinhar, tomar conta de menino, mudar fralda, acordar altas madrugadas para dar mamadeira, brigar com empregada, fazer supermercado, e você na rua se divertindo!”

       Meu amigo, calado estava, calado ficou, mas como a dor de barriga estava aumentando, estacionou em cima da calçada, do lado direito, perto do Jóquei Clube de Pernambuco, entrou num bar, foi ao sanitário, voltou correndo, pro carro, engulhando, e tocou pra frente. Já perto de Moreno, conseguiu se resolver num posto de gasolina. Aí, bateram a fome e a sede, o casal resolveu lanchar. Passaram mais de meia hora esperando uma mesa, a criança cada vez mais impaciente e sonolenta. Um sanduíche de queijo chegou, em pão de caixa frio, e o refrigerante, natural. Famintos, engoliram a gororoba e se picaram. Para encurtar a história, chegaram em Gravatá debaixo de um aguaceiro, às sete horas da noite. Hospedaram-se numa pousada e, apesar de exaustos, não conseguiram dormir, porque o frio era grande e eles não tinham levado roupas apropriadas e agasalhos. Mas o pior de tudo estava por vir. Nuvens de muriçoca aterrissaram sobre eles, sendo que a criança tem alergia a picada de mosquito. E não tinha água para o banho.

       A mãe pediu cortinado ao gerente da pousada, mas não tinha. Acenderam incenso, a criança começou a tossir. Passaram repelente nas perninhas e bracinhos dela, muito empolados, e durante a noite toda a mãe zelou pela filhinha entre um cochilo e outro, enquanto o pai roncava no divã, depois de duas doses puras de conhaque, tentando fugir daquele pesadelo. O dia amanheceu, as muriçocas desapareceram, o casal deu um cochilo, acordaram meio dia, fecharam a conta da pousada, almoçaram e voltaram pra Recife. Nada como um bom fim de semana para recarregar as baterias.

*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da União Brasileira de Escritores-UBE/PE.

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IMPRENSA ESPORTIVA





(Publicado no JC em 30/06/10)





    Esta crônica poderia falar sobre a briga de Dunga com a mídia brasileira ou duas coisas igualmente desagradáveis. Aliás, três: a insuportável corneta africana, que merece profunda análise dos sociólogos e antropólogos, a incontinência verbal de Galvão Bueno e o tormento que representa a Jabulani para os goleiros. Bola fantasma que caminhou sozinha, como alma penada, ou buscapé, para dentro do arco inglês, num despretensioso chute de fora da área dos americanos. Mas vamos às coisas amenas.



     Pode ser que eu esteja enganado, mas, lendo os comentários dos melhores articulistas esportivos do Brasil e da imprensa argentina e espanhola, cheguei à curiosa conclusão de que argentinos e espanhóis analisam com mais acuidade e até lirismo as partidas do selecionado brasileiro, inclusive a atuação individual dos jogadores. É um estudo mais agudo das táticas, sistemas e lances do escrete tupiniquim. A começar pela exatidão das manchetes: “Brasil, la eficacia sin encanto” (El País-Madrid): “Hoje ganha como antes, mas não nos dá alegrias. Não há samba. Entre os pentacampeões mundiais, o futebol já não é uma arte, uma festa maior, senão tão-somente um ofício. Há muito de italianização germânica neste Brasil tão de Dunga, tão feito à sua imagem e semelhança. Dunga nunca pareceu brasileiro”. (Qual jornalista brasileiro já disse isso?). Continua El País: “Como futebolista, ele era capataz de Romário e Bebeto em 1994; como técnico, 16 anos depois, ele é sargento de Luís Fabiano e Robinho, porque o roteiro de Kaká, horrível no início e absolvido no final, não é claro. O Brasil jogou duas partidas: venceu no campo, mas perdeu na opinião pública, razão pela qual os nostálgicos não perdoam a mutação”. Agora vejam que bonita constatação: “O Brasil ganhou os corações ao entreter o futebol, que agora só oferece resultados. Não é mais a mãe da invenção, é uma equipe construída para bater. Então, o Brasil pode ser devastador. Uma seleção firme e contundente. Tão candidata ao título como quando era um encanto.”

     El Clarín (Buenos Ayres): “Quando tiene ganas, Brasil arranca y mata: outra prova da superioridade da equipe de Dunga. Dominou os africanos, tomou o controle da bola, e, quando acertou os passes, liquidou. Dois gois que foram golaços. Desses que os antigos cronistas definiam como ‘gois de outro partido’. Por paradoxal que pareça, o contexto em que joga o Brasil é este: dorme, distrai, é paciente e, de pronto, acelera e define. E liquida e marca três gois que poderiam ser mais, com o mesmo argumento: domina a bola, faz lateral, e zás - saca o revólver e levanta a arquibancada. No primeiro gol do Brasil, Kaká deu um passe para Luís Fabiano como num tubo entre três rivais. Então, o de Sevilha, como um ladrão furtivo, foi assaltando os chapéus da Costa do Marfim, braços, peito e deixou rodapé. Kaká é, às vezes, iluminado, às vezes, não, mas sempre craque. Elano joga um papel silencioso, pouco vistoso mas decisivo. Aparece com surpresa no ataque. O melhor exemplo foi seu gol. Ele estava parado cinco metros diante da linha central, como um 8 clássico. Caminhava. Quando viu que Kaká ia centrar, acelerou e tocou no canto. Quantos volantes fizeram isso neste Mundial? Costa do Marfim foi o que são quase todos os rivais do Brasil: participantes, dançarinos de tango, escoltas que veem em primeira mão a incomparável superioridade do pentacampeão. Todos parecem temer o Brasil.” É uma verdade: até a FIFA treme diante da Canarinha. Do contrário, Dunga seria punido pelas ofensas assacadas contra nossos jornalistas.



    *Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Associação Brasileira de Imprensa-ABI.







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O SELECIONADO BRASILEIRO

(Publicado no JC 23/06/10)

     Algumas considerações sobre Brasil 2 x 1 Coreia do Norte. Não é fácil enfrentar adversário retrancado e de correrias, mas o Brasil, tirando o natural nervosismo da estreia, apresentou costumeiro e grave defeito: não tem jogadores habilidosos no meio-campo. Aquela infindável troca de passes laterais do primeiro tempo demonstra isso: faltava um craque para lançamento em profundidade e pelas pontas. Luís Fabiano, vindo de duradoura contusão, estava visivelmente fora de forma, e só recebia bolas de costas para o gol adversário, o que complica a atuação de qualquer atacante.

     O que incomoda é saber que temos jogadores para o setor da meia-cancha, que deveria ser formada por Hernandes, Kaká e Alex. Na verdade, Dunga preteriu artistas como Hernandes, Alex, Pato, Ganso, Neymar, Ronaldinho Gaúcho, Adriano e Marcelo, levando alguns reservas nas equipes em que atuam.

     Um escrete bom e que tenha a cara do verdadeiro futebol brasileiro seria: Júlio César, Maicon, Lúcio, Jean e Marcelo (Daniel Alves); Hernandes, Kaká e Alex; Nilmar, Luís Fabiano e Ronaldinho Gaúcho. No meu time Robinho não jogava. Ele atua bem contra os pequenos - contra a Argentina, nunca pegou nem vai pegar na bola. Das vezes em que enfrentou os hermanos, ele se escondeu. E assim sempre será. Porque ele é pipoqueiro.

     Kaká e Luís Fabiano, saindo do estaleiro, estavam sem ritmo de jogo, repita-se - mas isso virá aos poucos e, se o Brasil chegar às finais, eles deverão brilhar para a felicidade da nação. O meio-campo, que não temos, e cuja falta resulta em passes laterais e ligação direta, é muito importante num time. Os grandes campeões brasileiros constatam isso: no Flamengo, Biguá, Bria e Jayme de Almeida. Depois, Jadir, Dequinha e Jordan. No Vasco, Ely, Danilo e Jorge. No Fluminense, Pascoal, Telesca e Bigode. No São Paulo, Bauer, Ruy e Noronha. No Internacional, Viana, Ávila e Abgail. Na Portuguesa de Desportos, Djalma Santos, Brandanzinho e Cecy. No Santa Cruz, Zequinha, Aldemar e Edinho. No Náutico, Irani, Gilberto e Jaminho. No Sport, Zé Maria, Wilson e Pinheirense. No Bahia, Pappete, Bianchi e Aválle – e muitos outros.

     As linhas-médias de 58 e 62, do Brasil, eram ótimas: Zito, Orlando e Nilton Santos. E Zito, Zózimo e Nilton Santos. Sem linha-média um quadro não anda. Quem ganhou a Copa de 50, em pleno Maracanã, não foi centroavante nem ponta-de-lança, foi o center-half Obdúlio Varela, que dominou o campo. Se Kaká não voltar à sua forma, for expulso ou piorar, quem formará o meio-campo brasileiro? Esse é o grande problema da Seleção. O jornal Olé disse que o gol de Maicon contra os coreanos do norte foi falha do goleiro, mas esqueceu que o gol argentino contra a Nigéria foi resultante de uma falta clamorosa de Samuel que o árbitro não marcou.

     P.S.: A turma de 66 da Faculdade de Direito da Católica, desfalcada sentimentalmente com a perda recente de Cleones Avelino, leitor assíduo desta coluna.



*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Federação Internacional de Jornalistas.


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A BOLA DA COPA



Arthur Carvalho (JC 16/06/10)


      Dizem os alfarrábios que o futebol foi inventado na China, em priscas eras. E que as bolas eram caveiras humanas. Outros garantem que o “association” foi criado nos campos verdejantes e bem cuidados da Grã-Bretanha, pelos ingleses, que se julgavam, equivocadamente, os melhores do mundo, até perderem de 1 x 0 para os amadores norte-americanos, em Belo Horizonte, na Copa de 50, naquela que ainda é considerada a maior zebra de todos os mundiais. E levarem 6 x 1 da Hungria, dentro de casa, em 1954.

      No meu tempo de criança, batíamos baba (aqui é pelada, no Sul, racha) com diversas bolas. Tinha a bola de papo de peru, que, como o nome diz, era feita de papo de peru. Enchia-se o papo de ar até ele chegar ao tamanho de uma bola, digamos, “oficial”, depois o envolvíamos com folhas novas de mamona, amarrando as folhas ao papo com barbante. O barbante protegia o papo, dando-lhe mais equilíbrio e consistência. Bola frágil, furava com facilidade quando espetava em espinho, prego, ponta de pedra. E estourava num lance violento de travada ou dividida.

     Existiam também as lendárias bolas-de-meia. Feitas de jornal amassado e envoltas em meias de mulher, faziam a alegria dos meninos que não podiam comprar a “de verdade”.

     Brincávamos ainda com a bola de tênis – ótima para treinar controle – e de borracha. A de borracha já nos dava grande alegria, mas era leve, quicava muito, furava constantemente. Excelente para as peladas de beira-de-praia, porque caía no mar e voltava com o mesmo peso, ao contrário das de couro. Mas quando melava de areia, ardia no pé de quem chutava e no peito descoberto do pobre do goleiro. Não conheço posição mais infeliz que a de goleiro de praia.

     A primeira bola oficial que chutei era de couro, costurada à mão. Absorvia água de chuva, o que a tornava muito pesada. Enchia-se essa bola pelo pito de borracha, enfiando-o para dentro, com câmara e tudo. Em seguida, “costurava-se” a brecha. Essa costura, que ficava do lado externo da bola, exigia habilidade. Mesmo assim, machucava a testa dos cabeceadores.

     A partir de 1950, a bola passou a ter costuras internas de couro. Na Bahia, chamava-se “bola argentina”, não sei por quê. Sei que um dia meu pai chegou em casa e anunciou para nosso delírio (meu e de meu irmão Carlos Aloysio): “Comprei uma bola argentina pra vocês”. Joguei a vida inteira com essa bola. Quanto mais água pegava, mais pesada ficava - bola preferida dos jogadores de chute forte. Para esses, a bola quanto mais pesada, melhor, porque não sobe muito. Naquela época, por economia, pintava-se de branco a bola usada para as partidas noturnas, e a tinta a óleo endurecia o couro tornando a bola pesadíssima. Muito cheia, parecia de chumbo e chegava a doer no pé. Cortar essa bola, de cabeça, numa barreira, era suicídio.

     Em 1970, surgiu a Telstar, da Adidas, com 20 hexágenos brancos e 12 pentágonos pretos. Em 1986 a Azteca abandonou o couro e usava material 100% sintético, com fibras feitas em laboratório. A bola da África do Sul tem oito gomos sintéticos 3D, já fabricados no formato esférico, com rachaduras em sua superfície, revestimento de algodão e poliéster e câmara de látex, e promete trajetória estável e total precisão. As opiniões se dividem. Júlio César não gostou, alegando que elas são muito ligeiras e “mudam de caminho” antes de chegar ao gol, dificultando-lhe a defesa. A altitude de Joanesburgo (1.753m) tornam-na um pouco mais leve. Disseram também que ela parece “bola de praia” e “bola de supermercado”. E que quem a desenhou e projetou “nunca jogou futebol”. Os garotos-propagandas da Adidas, fabricante da Jabulani, elogiaram-na, inclusive Kaká. Nesses amistosos do Brasil na África, ela me pareceu maneira. O ideal seria o meio-termo: nem ágil, nem ronceira. Com ou sem ela, a sorte está lançada.



*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é do Instituto Histórico de Olinda.



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DOS BRINQUEDINHOS ANTIGOS

Arthur Carvalho (JC 09/06/10)

   Não sei por que tanta celeuma em torno de sexo na Copa. Pode? Não pode? Está liberado? Proibido? Esse negócio de não gostar de vinho, sorvete e sexo tem a cara de Dunga, e Freud explica. Como explica aquela mão no bolso ao cumprimentar o Presidente da República.

   Por incrível que pareça, podemos encontrar justificação do sensacionalismo e da questão em Menino de Engenho. No livro, o primeiro do autor, em tom de autobiografia romantizada, José Lins do Rêgo conta suas experiências sexuais aos doze anos, com a negra Zefa Cajá, sem remorso algum, pois já estava acostumado a ver, ainda criança, com os moleques da bagaceira, os animais no coito (“a impetuosidade dos touros por cima das vacas”), no Engenho Corredor, de seu Avô, onde passou a infância livre, encarando, portanto, o sexo como coisa natural.

   Tudo mudou quando, interno em colégio do Recife, recebeu educação religiosa e “aprendeu” que sexo é pecado - e o pesadelo “refletiria em toda a minha vida, como uma desgraça”.

   Esse sentimento de culpa, de ameaça e condenação com o fogo eterno dos infernos, propagado e ainda vigente nos conventos, seminários, noviciados e internatos religiosos, perdura na cultura e no subconsciente da nossa população. Vejam que o tema só interessa aos selecionados de origem latina, como Argentina e Brasil. Nessas embaixadas, o assunto continua tabu e notícia.

   Precisa ainda ser avaliado, o aspecto físico e atlético. Hélio Grace, campeão brasileiro de jiu-jítsu, seu introdutor e professor no Brasil, guardava castidade durante dois meses antes de cada combate. Ele achava que sexo antes da competição exaure as energias do lutador. Era tão cuidadoso em poupar forças que não concedia entrevista no dia da briga, muito menos a locutor de pista quando subia no ringue. Talvez ele tivesse razão - sua luta-livre com o ex-aluno Waldemar Santana durou mais de duas horas, e eles deixaram o tablado ensanguentado. O duelo de seu sobrinho Carlson Grace com o mesmo Waldemar Santana, no Maracananzinho, foi tão violento, que fez o chefe de Polícia do Rio de Janeiro, Gal. Amaury Kruel, suspender o massacre.

   Penso que o sexo deve ser franqueado, em qualquer delegação de qualquer país, não somente para aliviar as tensões do jogador que está confinado na concentração, por longo tempo, mas também por ser atividade prazerosa e reguladora dos hormônios do homem e da mulher. Segundo o saudoso médico capunguense Toinho Ferreira Lima, “dos brinquedinhos antigos (o sexo) ainda é o melhor”.

   Claro que tudo tem limite: até água demais mata por afogamento. Na medida exata, sexo faz bem à saúde. Argemiro (El Kid Bengala) 66 anos, autoridade no assunto, que caminha conosco na Beira-Rio, acha que o Ministro Temporão exagera, e pondera: “Cinco é muito. Bastam três vezes por semana. De preferência, galetinho.” Atualmente, e apesar das bazófias, Kid foge de uma amazonensezinha como o diabo da cruz, poupando e preservando a máquina já um tanto enfadada.

   O caso é sério. João Saldanha conta que flagrou dois rapazes do escrete de 70, se beijando, agarradinhos na cama. Uma coisa é certa: na África do Sul, a turma não encontrará dificuldade para namorar. Jovens, sarados, famosos, solteiros, dinheiro no bolso, nunca toparam e nem toparão problema em lugar algum. Nem os casados, que ninguém é de ferro e não se deve dizer desse pão eu não como e dessa água não bebo.

*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Olindense de Letras.


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A BUZINA DO SENADOR



Arthur Carvalho (JC 02/06/10)


   Estive em Natal, recentemente, para as bodas de ouro de Kleber de Carvalho Bezerra com minha irmã Maria Elisa. Tivemos como cicerones – eu, Joaninha e Mamá - o engenheiro, meu velho e querido amigo, Dom Fabiano Veras, e minha comadre Jandira, cuja gentileza não tenho como agradecer e retribuir.

   Na missa, o prazer de reencontrar Oudren Madruga, Aécio Augusto Emerenciano, os irmãos Franklin e Haroldo Bezerra, Carlos Alberto, Lauro Bezerra, e, na recepção, Ezequiel Ferreira de Souza, Etevaldo Miranda, Hélio Nelson e Ronald Gurgel, para citar apenas os de minha geração.


   Há muito eu não ia a Natal.


   Natal está linda, limpa e arborizada, com construções novas. Os noruegueses, espanhóis e portugueses gostam da cidade e têm investido muito nela, em diversificados empreendimentos, com duas consequências: o progresso urbano e a inflação galopante do preço dos imóveis, inclusive terrenos próximos ao litoral, ao mar, principalmente na Via Costeira, local de excelentes hotéis. As praias de Cotovelo, Búzios, Pirangi do Norte e Pirangi do Sul também são muito valorizadas. Vale a pena dar um pulinho na Redinha para comer uma sardinha frita com cerveja.


   Mas o que me impressionou mesmo em Natal foi seu trânsito. Nos três dias que passei lá, não ouvi uma buzina. Que diferença do Recife! Na área entre o Entroncamento e as pontes da Torre e da Capunga, por exemplo, a poluição sonora nos horários de pique é infernal. Os motoristas buzinam por qualquer motivo, defronte dos hospitais da Restauração, Santa Joana e Hemope. As ambulâncias circulam em alta velocidade e com sirene ligada, em ziguezague terrível. E a turma não abre pra elas. Conheço um senhor que se mudou da Av. Beira-Rio por não mais suportar sirene de ambulância e da Polícia.

   Pergunta-se: o que se passa na cabeça de um indivíduo que, preso a um engarrafamento, buzina insistentemente, para “resolver” um problema a quilômetros de distância? Será que o motorista da frente está gostando da situação? Será que vai dar passagem pro apressadinho?


   No meu tempo, quando um imprudente se picava, cortando todos os veículos que encontrava, buzinando e atropelando, dizia-se: “Coitado, ele está apressado porque vai tirar a mãe da zona!” Como se não bastasse, na hora do rush, os motoqueiros estão trafegando por cima das calçadas, enquanto as carroças de cavalo, as pequenas carroças puxadas por pobres diabos e as bicicletas trafegam na contramão. Fora os gênios que ultrapassam pelos acostamentos das avenidas e estradas. No Brasil, prejudicados são os otários que cumprem a lei. Os marginais permanecem impunes, rindo à toa.


   O ex-dono da revendedora de veículos “O senador dos automóveis”, estabelecida em priscas eras na Conde da Boa Vista, me disse, certa vez, que vendeu um Cadillac conversível a um prefeito do interior, porque a buzina tocava as primeiras estrofes de Asa Branca. “Parece que estou vendo a mulherada voar nesse possante, quando eu estiver no centro da cidade tocando esse baião!”, imaginou o burgomestre, ao pagar o Cadillac, em espécie, com um maço de cédulas, tiradas do bolso traseiro da calça jeans desbotada, alpercatas de couro com chapéu de vaqueiro.


   Se o carro é arma mortal na mão de um irresponsável, o automóvel de luxo exerce grande fascínio na maioria das pessoas, principalmente mulheres. Quando um amigo meu, já um tanto provecto, estaciona sua Mercedes esportiva, do ano, aparece uma boyzinha deslumbrada: “Que carrinho lindo!” “Você achou, meu bem?” “Achei.” “Quer conhecer melhor o dono?” E a resposta é sempre “quero”. Com ou sem buzina, que Deus é pai e não padrasto.



*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Federação Internacional dos Jornalistas.




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MULHER BONITA

Arthur Carvalho (JC 26/05/10)

   “Toda mulher bonita tem dono” - dizia Juscelino Kubitschek, o pé-de-valsa, autoridade no assunto. “Mulher que tem dono não me interessa” - jura, por tudo que é sagrado e aos pés da Santa Cruz, o advogado Ajax Pereira, gente de primeira qualidade, outro entendido no “métier”, hoje mais comportado, porém eufórico, como todo veterano, com o progresso da farmacopeia.

   Faz tempo, ia eu do Recife pro Rio, o avião escalou no então Aeroporto Dois de Julho, desci pra me encontrar com Tio Heitor de Oliveira, que morava na Bahia. Pra fazer hora, fomos correr as vitrines e paramos numa “boutique” de artesanato. Veio nos atender uma mulata monumental vestida de baiana. Até que eu não ia comprar nada, mas, dadas as circunstâncias, como diria o escritor Abdias Moura, comprei uma pequena figa de prata e jacarandá, para dar de presente a Lenita, uma amiga carioca de doces olhos verdes.

   A mulata chamava-se Odete Maria de Jesus, natural de Cachoeira, cidade histórica do Recôncavo, plantada à margem direita do Paraguaçu. Vinte anos, charmosa e solteira, quando se virou para embrulhar a figa, Tio Heitor suspirou: “Benza Deus!” A compra da figa me proporcionou os minutos necessários para colher esses dados. Quando voltei do Rio, pousei novamente em Salvador e perguntei por Odete a Tio Heitor. “Ah, meu filho, já levaram! Essas coisas não duram muito! Dizem que fugiu com um empresário paulista.” Sempre o maldito poder econômico.

   Domingo passado, eu estava tomando café numa padaria da Madalena, surge uma mulher bonita, passa por mim e dá bom dia. Respondi à saudação sem saber quem era. Ela pegou a bandeja no balcão, serviu-se, dirigiu-se à nossa mesa, pediu licença para sentar: “Há muito que eu queria conhecê-lo pessoalmente. Todos falam bem do senhor, inclusive minha mãe.” Tentei recordar quem seria a mãe dela, mas com receio de uma gafe, não perguntei nada, esperava que com o andar da carruagem, ela me desse uma dica que me permitisse identificar sua mãe. Procurei aliança em suas mãos, olhando se tinha, pelo menos, aquela marquinha branca da aliança desprezada. Não havia o menor vestígio de joia, o que, aqui pra nós, me reanimou.

   Ela discursava e eu escutava. De vez em quando, um conhecido me cumprimentava. Eu respondia com certo distanciamento e cerimônia, para não atrapalhar conversa tão agradável. A moça me botou no pedestal. Disse que eu era um homem prestativo, sincero e educado. Que todos seus parentes me deviam favores, inclusive a irmã Núbia, que ficou muito satisfeita com minha intervenção para sua transferência de uma escola para outra. Disse o nome da escola, que eu não lembro. Daí por diante, se me restasse alguma esperança de reencontrá-la, por mais tênue que fosse, ela foi se esvaindo e evaporando nas nuvens carregadas daquela manhã chuvosa, abafada e calorenta. Em seguida, levantou-se, me beijou: “Nossa família será sempre grata ao senhor, vereador Mauro Godoy.” Ao que respondi, um tanto morgado: “Não deve nada, minha filha, estamos aqui pra isso mesmo. Mande as ordens sempre.” E ela se despediu, radiosa e linda como chegou, crente que falou com meu amigo da velha guarda Mauro Godoy. E eu continuei tão solitário quanto o vento das montanhas.



*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.


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COERÊNCIA!


Arthur Carvalho (JC 19/05/10)


   Segundo o nosso Aurélio, coerência é a “qualidade, estado ou atitude de coerente, ligação ou harmonia entre situações, acontecimentos ou ideias; relação harmônica; conexão, nexo, lógica.”

   Portanto, Dunga tem razão quando diz que sua lista de convocados obedece a uma “coerência”. Mesmo porque a coerência tanto pode estar a serviço da inteligência como a serviço das trevas da burrice que, conforme o escritor André Carneiro Leão, costuma vir aliada à ignorância. Dunga: “Se você não confiar em ti (sic) próprio, não adianta.”

   Conheci um advogado gaiato que assumia: “Tenho consciência de minha mediocridade. Afinal, não sou nenhum Orlando Gomes nem Teixeira de Freitas. Pobre da humanidade se não fossem os medíocres - são eles que alavancam o mundo.” O saudoso cronista Renato Carneiro Campos desprezava solenemente o “bom senso”. O que seria da literatura universal se o epilético Dostoievski e o quase suicida Joseph Conrad fossem homens “equilibrados” e de “bom senso”? O que seria das artes plásticas se Van Gogh fosse “normal”? Questionava ele.

   Em 1950, Flávio Costa não convocou Heleno de Freitas para a Copa. Heleno era o maior centroavante do Brasil. Tinha sido campeão carioca com o Expresso da Vitória do Vasco da Gama, em 49. Não convocou Mauro Ramos, o melhor beque central do Brasil, campeão sul-americano de 49. Preferiu Juvenal e Nena, um arranca-toco que jogava com as meias arriadas, dando porrada. Não escalou Nilton Santos, porque a Enciclopédia do Futebol usava chuteiras bico fino e, para Flávio, jogador de defesa tinha que calçar “chuteiras bico duro”, para “isolar a bola”. Em seu lugar, entrou Bigode, half-esquerdo sem recursos, que tomou baile de Gighia, e ali o Brasil perdeu o Caneco. Flávio Costa foi coerente com seu passado de half do aspirante do Flamengo, quando atendia pelo sugestivo apelido de Alicate, pertencendo também à temível Polícia Especial do Estado do Rio de Janeiro, durante a ditadura Vargas. (Os “Boinas Vermelhas”).

   Para jogo da Seleção no Pacaembu, ele escalava: Bauer, Ruy e Noronha, a linha média do São Paulo; no comando do ataque, Baltazar, do Corinthians, para agradar os paulistas. No Maracanã: Bauer, Danilo (Vasco) e Bigode (Flamengo); centroavante, Ademir (Vasco), para bajular os cariocas. Haja coerência! Mas, e o conjunto?

   Em 54, Zezé Moreira cortou Zizinho, o virtuoso armador. Não convocou Garrinha e escalou Brandãozinho de centromédio, sendo o dono da posição Dequinha. Levou Pinheiro, um brutamontes, em detrimento de Mauro Ramos. Assim, ele foi coerente com seu retrospecto de médio medíocre do Fluminense, inventor da retranca no Brasil (marcação por zona) e integrante da Polícia Especial do Estado Novo.

   Zagalo, que herdou de João Saldanha o time de 70 pronto, botou o pipoqueiro Paulo César para atuar recuado de ponta-esquerda, se espelhando na sua figura de ponta-recuado, muito aquém de Canhoteiro e Pepe, até que a torcida brasileira preferiu Rivelino. Interessante como ex-jogadores medíocres não gostam de craque. Zagalo passou a vida barrando Ademir da Guia e Dirceu Lopes, considerado por Garrinha o maior jogador do mundo à época. E quando, pressionados pela imprensa escalam craques, armam esquemas que os inutilizam, reduzindo-os a pernas-de-pau, como Parreira fez com Raí em 94, nos Estados Unidos. Por coincidência e coerência, Zagalo e Parreira detestavam Romário - e se não fosse o baixinho na decisiva contra o Uruguai, no Mário Filho, ambos seriam os primeiros técnicos a perderem as eliminatórias treinando o Brasil. E só lhes restaria o emprego de roupeiro do Íbis, se saíssem vivos do estádio.

    P.S.: Telefonema do engenheiro Paulo Cunha: “O nome certo era Pernambuco Autoviária Ltda. E não Autoviária Pernambucana, como você escreveu.” Grande Paulo!



*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Olindense de Letras.


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A TRISTE REALIDADE

Arthur Carvalho (JC 12/05/10)

   Por que os nossos cartolas não seguem o exemplo dos europeus? Na transmissão direta dos jogos da Itália e da Espanha, na TV, vemos os presidentes dos clubes sentados juntos, na tribuna de honra torcendo por seus times, e se cumprimentando depois da partida. Até quando vão agredir covardemente jornalistas brasileiros no exercício de sua profissão no Brasil? O ato de tomar com violência material usado por repórter durante cobertura esportiva sem devolvê-lo, é comportamento lamentável. Coisa da Idade Média. Não tem desculpa.

   Na crônica anterior falei sobre a falta de educação e o hábito de praticar pequenos furtos e trotes para os bombeiros, o 190 e o Samu. Na relação das maracutaias, estelionatos e outras falcatruas, me esqueci de contar uma que fez “sucesso”, no princípio dos anos 50, nos cinemas do Rio de Janeiro. Nessa época, surgiram as máquinas de vender Coca-Cola. O freguês colocava uma moeda de não lembro quantos cruzeiros, numa fenda da máquina, e ela despejava o refrigerante gelado num copo de papel. Como o brasileiro é mais sabido e inteligente do que os outros povos todos reunidos do planeta Terra, logo surgiram os gênios da raça para amassar as tampinhas de cerveja, nos trilhos dos bondes, para elas ficarem bem amassadinhas, e passar no, como direi? Orifício das máquinas, substituindo os níqueis. Resultado: recolheram as máquinas, quase todas danificadas, e ninguém foi preso.

   Nos fins dos anos 40, Recife (àquela época, a terceira cidade do Brasil e a mais limpa e bem iluminada da América Latina, sem esgoto borbulhando a céu aberto nas ruas do centro comercial, sem camelôs vendendo mercadoria pirata chinesa, e infectas barracas de lanche, de alvenaria, nas calçadas, sem poluição sonora, sem fedentina e assaltantes, e com o São Luiz funcionando como cinema de luxo e não mictório, sem espetinho de gato servido com cachaça em plena via pública, com a Conde da Boa Vista espaçosa e livre, antes de se transformar em corredor da morte e curral de gente, com engarrafamentos quilométricos e mortificantes) - Recife tinha a melhor frota de ônibus do país, a Autoviária Pernambucana, de Vivi Menezes. E Salvador possuía os melhores, mais modernos e confortáveis bondes da América do Sul. Eles eram fechados, enormes, pintados de amarelo, as rodas da frente moviam-se de lado, acompanhando as curvas dos trilhos, de bitola larga, interior espaçoso, as poltronas lindas, forradas de couro verde. Com três meses de inauguradas as linhas, os vândalos saíram cortando as poltronas com gilete, canivete e navalha. E ninguém foi preso.

   Perguntem à Oi quantos aparelhos de telefones públicos são danificados por mês pelos cafajestes, muitos em bairros pobres, sem outro meio de comunicação. Quantas mudas de planta e flores são furtadas diariamente dos jardins da Av. Beira-Rio e do Parque da Jaqueira? Quantos ônibus são depredados depois dos jogos de futebol, e os vândalos ficam impunes?

*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras do Recife.



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CULTURA

Arthur Carvalho (JC 05/05/10)


     Se você pegar o novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa,está lá, no item 7 do verbete cultura: “O processo ou estado de uma nação, que resulta do aprimoramento de seus valores, instituições, criações, etc.: civilização, progresso.”

    O conceito de cultura é amplo. O próprio Aurélio refere-se a cultivo de terras, cultivo agrícola, criação intelectual e artística, refinamento de hábitos, modos ou gestos etc. etc.

   É mais ou menos sobre os hábitos de um povo que quero falar. Quando se diz que o brasileiro não tem educação, não é um povo civilizado, vem-se logo com aquela história de que piores eram Hitler, Mussolini e Stalin. Mas a verdade é essa, o brasileiro tem vícios próprios dos cafajestes, dos sem caráter, dos debochados, dos chamados moleques safados.

   Um desses vícios é o dos pequenos furtos. Quem deixar um objeto, um pertence qualquer num bar, num restaurante ou nos transportes coletivos, está frito. É tão raro quem encontra o objeto e devolve ao dono, que o episódio torna-se manchete de jornal.

   Vindo, certa vez, de João Pessoa para Recife, parei numa carne-do-sol, em Abreu e Lima, para almoçar, fui ao sanitário, esqueci os óculos esportivos na pia. Quando sentei à mesa, senti falta deles, voltei imediatamente ao sanitário e não os encontrei mais. Eram óculos de estimação, presente de uma amiga que já havia morrido. Na vã esperança de recuperá-los, fui me queixar ao gerente. Ele estava em pé, atrás do balcão, conferindo umas comandas, não se dignou levantar os olhos para me ouvir. Embora eu tivesse sido afanado em seu estabelecimento, sua atitude reflete a cultura de um povo. Com sua passividade e desatenção, ele quis dizer que minha queixa era uma bobagem; que aquele episódio não tinha a menor relevância; que talvez aquilo fosse até um troço banal e corriqueiro ali. E que ele não era culpado pelo acontecido nem tinha satisfação a me dar. Traduzindo: ele não era responsável por roubos ou furtos acontecidos na sua casa comercial. E, por fim: entre interromper suas contas e me perder como freguês, ele preferia a segunda hipótese.

   Outro dia, minha filha mais nova foi à toalete de um hospital particular daqui do Recife, quando regressou à sala de estar, sentiu falta de sua bolsa, retornou à toalete, a bolsa tinha desaparecido. Dentro da bolsa, identidade, pequena quantia em dinheiro, celular. Isso aconteceu num hospital infantil - em plena luz do dia. Não se trata de violência, homicídio, estupro - é mau-caratismo mesmo, capadoçada, mesquinhez. Prefiro o assaltante de banco. E o tarado que passa trote para o 190 e para o Samu? E o larápio desalmado que desvia verba de merenda escolar? E os porcos que furtam os pobres velhinhos, aposentados e analfabetos?

   O boyzinho americano que pichou o muro de um edifício de Bangcoc foi condenado a 27 chibatadas. Até Clinton interferiu por ele pedindo ao presidente da Tailândia que comutasse a pena. O mais que Clinton conseguiu foi sua redução, de 27 para 17 açoites, se não me engano. Esse boy ainda vai pichar muro em Bangcoc? Um general linha-dura, ex-comandante militar da Amazônia, dizia que cacete não é santo mas faz milagre.

   Comentando esses fatos com dois policiais, de alto escalão, outro dia, eles concordaram, quando lhes disse que o pichador de parede ou o vândalo de patrimônio público que chegar preso em flagrante, numa delegacia nossa, será logo “solto” pelo próprio delegado, que alegará ter coisa mais séria para fazer. Porque nossa cultura é essa. Bem público não vale nada, “é de todos nós”, “não tem dono”. Então, vamos roubar, depredar, destruir. É só ver quantas vezes já danificaram impunemente o bronze de Carlos Drummond de Andrade, em Copacabana, o de João Cabral de Melo Neto, na Rua da Aurora, e o busto de Manuel Bandeira, na Riachuelo, hoje na Rua da União, e os conventos, igrejas e prédios históricos de Olinda. Detiveram esses que pintaram o Cristo Redentor, por se tratar de monumento de fama internacional e notícia de grande repercussão. Mas em vez de 4 a 6 anos de prisão, eles já foram perdoados pelo Governo do Estado do Rio.


*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Pernambucana de Letras Jurídicas.

 

 
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O NOVO IMIP

Arthur Carvalho (JC 28/04/10)

   Convidado por Myriam Asfora, fui conhecer as obras e projeto do novo Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira, nascido Instituto Materno Infantil de Pernambuco-IMIP, lá encontrando seu presidente Antônio Carlos Figueira e vice-presidente Bertoldo Kruser.

   O IMIP é uma entidade não-governamental, sem fins lucrativos. Fundado em 1960 por um grupo de médicos pernambucanos, liderados pelo Prof. Fernando Figueira, tem, como objetivo, atender mulheres, crianças e adolescentes da população carente com os melhores recursos técnicos e científicos disponíveis e contribuir para a qualificação de recursos humanos na área da saúde, proporcionando uma formação técnica e ética. Foi o primeiro do Brasil a receber o título de “Hospital Amigo da Criança”, concedido pela Organização Mundial de Saúde/UNICEF/Ministério da Saúde.

   Quando eu passava de carro ao largo do Hospital Pedro II, deplorava suas condições de abandono, pintura e paredes descascadas, janelas estragadas, e me lembrava dos áureos tempos onde ali trabalharam durante muitos anos, entre outros, sumidades como os Marques Arnaldo, Romero e Ruy João, Eduardo Wanderley, Monteiro de Morais, Arsênio Tavares, Manoel Caetano, Francisco Montenegro. Alcides Fernandes, Martiniano Fernandes, Ruy Tavares, Walter Costa, Salomão Kelner, Lalôr Mota, Saulo Suassuna, Clóvis Paiva e Geraldo Sá. E aquela decadência me constrangia, me deixando triste, porque essas coisas entristecem. Agora, não, fui testemunha pessoal da grande obra que o IMIP está realizando ali, ressuscitando aquele que foi durante anos consecutivos, o mais tradicional dos hospitais de Pernambuco, reconhecido como uma das estruturas hospitalares e de pesquisa médica mais importantes do país, onde pontificavam renomados mestres da medicina do Nordeste, formando gerações de clínicos notáveis, curando e reabilitando milhares de pacientes.

   Em março de 2007, o IMIP lançou oficialmente o Projeto de Restauro e Modernização do Hospital Pedro II, um dos 10 prédios que compõem o complexo hospitalar, atendendo a um antigo anseio da comunidade médica e da população pernambucana. Além das áreas de mutação, cirurgia, ambulatório, exames, educação e pesquisa, o hospital abriga o Espaço Ciência e Cultura, construção anexa ao prédio, destinada à realização de eventos, como congressos, convenções, conferências e telemedicina, em auditório lindo, climatizado, confortável, para 720 lugares.

   Visitando essas dependências, com Antônio Carlos, filho de Fernando Figueira, Bertoldo Kruser e Myriam Asfora, fiquei admirado e contente ao constatar que o IMIP contribuirá com significante parcela da ciência médica e do atendimento da enfermagem e demais funcionários, do mais graduado ao mais humilde, para desafogar o precário sistema de saúde de Pernambuco, inclusive no setor de emergência, aliviando o fluxo e a superlotação de hospitais da rede pública, como o Restauração, o Getúlio Vargas e o das Clínicas, por exemplo. Nota-se o devotamento de Antônio Carlos Figueira, Bertoldo Kruse e Myriam Asfora, pela nobre causa. Impressiona o idealismo que os move. Quando por ali eu passar para audiências no Foro Rodolfo Aureliano, já poderei olhar sem nostalgia para o Hospital Pedro II, de arquitetura histórica em estilo clássico, da década de 30. Nem tudo está perdido.

*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes e Letras de Pernambuco.


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FALTA DE EDUCAÇÃO


Arthur Carvalho (21/04/10)



    Basicamente é tudo falta de educação doméstica. Não adianta a pessoa fazer curso para prestar exame de motorista no Detran, se seus pais não lhe deram educação. Vou abrir um parêntese para certas confissões. Nunca bati em filho meu, mas soube, por alguém, cujo nome não me lembro, que Gilberto Freyre era a favor de “umas palmadinhas” em criança recalcitrante.

    Minha mãe dizia que minha avó, sua mãe, afirmava: “Bato em meus filhos para os outros não terem vontade de bater”. Se existe uma coisa chata é criança chata. Rubem Braga não permitia criança no seu apartamento. Não tinha paciência com pirralhos.

    Quem é mal-educado desrespeita todas as regras do trânsito, fura fila, fuma em lugares fechados, leva celular para cinema e teatro. Bullyng nas escolas é, antes de mais nada, falta de educação doméstica. Antigamente a mãe era presente em casa e na educação dos filhos - hoje a maioria dos casais sai para trabalhar, e os filhos ficam abandonados, em más companhias. Quando se quer consertar é tarde.

   Outro dia eu estava na sala de espera de um consultório médico, lendo o primeiro caderno do JC. Deixei os outros cadernos arrumadinhos debaixo do envelope com os resultados de um exame de ultra-sonografia. Sobre o envelope botei meu chapéu Panamá, presente de Luiz Augusto Correia de Araújo, chegou um cidadão já um tanto provecto, sentou-se ao lado da cadeira onde estava o jornal, retirou o chapéu e o envelope com o exame, pegou o jornal e ficou lendo sem a menor cerimônia. Ele me viu com a primeira parte do matutino, sabia que o jornal era meu, nem sequer pediu licença. Quer dizer: prevendo uma possível maçada, tão comum nos consultórios médicos brasileiros, com longas filas para atendimento, passo numa banca de revista, compro o JC para chegar ao escritório já sabendo das notícias mais urgentes e importantes e um individuo qualquer se acha no direito de interromper minha leitura. Isso é correto? Na cabeça dele, nada demais aconteceu. Mas quem assim age no cotidiano, não comete apenas esses pequenos deslizes de comportamento. Sua vida é toda torta. Na Bahia costuma-se dizer desses tipos: “Aquele cara é um vida torta”.

   Essa semana, eu estava lendo um jornal, no mesmo consultório, e, por precaução, não separei os cadernos. Pois acreditem se quiser: uma senhora levantou-se do lugar onde estava e tentou puxar o caderno de economia da minha mão. Cinicamente, pediu licença: “posso ver essa parte?”. “Estou lendo o jornal”, respondi. E ela, insistindo: “É só essa parte aqui”. Neguei o pedido. Recentemente, estou com Antônio da Fonte e Joezil Barros almoçando em tradicional e charmoso restaurante do Recife, conversando assuntos, digamos, particulares. Chega uma moça e corta nossa conversa, para vender livro. Não é constrangedor?

    No ano passado, estou num café do Paço Alfândega, com uma amiga. Era um assunto pessoal, surge um rapaz, e, a pretexto de expor sua mercadoria, pede para sentar à nossa mesa e vender o seu peixe. Pode haver situação mais incômoda?

    Há coisa mais desagradável do que tentarmos sentar na nossa cadeira numerada de teatro ou de estádio de futebol ou poltrona de avião, e o biltre que a ocupa se negar a levantar? E o motorista que buzina insistentemente, depois das dez da noite, para abrirem o portão do prédio onde mora? E o boy que virou a noite na farra e fica debaixo do seu edifício com a mala do carro aberta e o som no último volume,tocando brega? E o telefonema depois das onze da noite ou às seis da manhã? Com o engraçadinho perguntando se o acordou, embora você já tenha despertado às cinco? E o desconhecido que senta ao seu lado no ônibus interestadual e quer saber detalhes íntimos de sua vida e o que é que você vai fazer na cidade onde desembarcará? E a mãe que só tem filhos gênios? E a mãe castradora e dominadora? Dirá o leitor que isso não é falta de educação. Mas é, porque filho criado assim vai ser problemático para o resto da existência.


P.S: Os injustos impropérios e insultos assacados pelo Valente gaúcho contra o Diário de Pernambuco é, antes de mais nada, grosseiria.


Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia Recifense de Letras.



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OS INJUSTIÇADOS



Arthur Carvalho (14/04/10)


    Entrevistado pelo jornalista Marcelo Barreto, editor de texto e repórter de esporte da TV Globo, disse Gerson sobre Zizinho: “Esse era mestre. Melhor não vai ter. Difícil explicar o mestre. É a inteligência, a capacidade, pHd. O mestre não tem explicação.”

   Ao aproximar-se a Copa do Mundo da África do Sul, a mídia traz matérias sobre o assunto. Acho importante não somente recordar os tempos de glória do nosso futebol e suas conquistas históricas, reconhecendo e elogiando seus heróis, mas também lembrar os grandes craques, que, pelos misteriosos desígnios do destino, não se sagraram campeões mundiais. E eles foram muitos.

   A lista desses injustiçados pela sorte seria longa e enfadonha, mas a citação de alguns deles é inevitável. Como explicar que o maior jogador de todos os tempos, depois de Pelé, o mestre Ziza, não tenha sido campeão do mundo? Contra a Iugoslávia, na Copa de 50, ele entrou com o joelho direito machucado, enfaixado e coberto por uma joelheira, após fazer compressa de água quente e passar pomada para cavalo de corrida, no local. Fez um gol na vitória por 2 x 0 e foi eleito o melhor em campo. Sua atuação inspirou o jornalista italiano Giordano Fattori, da Gazetta dello Sport: “O futebol de Zizinho me faz recordar Da Vinci, pintando alguma coisa rara”. E aí? Como ele mesmo diria mais tarde, num desabafo infeliz, que lhe causou muitos dissabores: “Até Fontana foi campeão mundial”. Para os que não se lembram, Fontana foi zagueiro reserva do escrete brasileiro, em 70, no México, tendo morrido aos 40 anos de idade.

   Podemos dizer que todo o time que perdeu para o Uruguai, em 50, no Maracanã, foi castigado. A equipe de 82, na Espanha, também. Pena que craques como Careca, Leandro, Júnior, Zico, Éder, Falcão, Zé Sérgio e Joãozinho não tenham erguido a taça, o mesmo acontecendo com Leônidas da Silva, o Diamante Negro, o Homem de Borracha, Domingos da Guia, Fausto, a Maravilha Negra, e Canhoteiro, nosso maior extrema-esquerda.

   E Buzansky, Lantos, Bozsik, Kocsis, Hidegkuti, Puskas, Czibor e Budai, da “Seleção de Ouro” da Hungria, derrotado na final, por 3 x 2, para a Alemanha Ocidental, em Berna, em 54, depois de ter aplicado 6 x 3, no English Team, em pleno Wembley, em 25 de novembro de 1953, considerado o amistoso do século?

   E os discípulos do treinador da “Laranja Mecânica”, Rinus Michels, referência ao filme de Stanley Kubrich, de 1971, A Clochuborh Orang, romance de Anthony Burgess? Querem ingratidão maior do que Joan Cruyff, dinâmo da máquina de jogar bola da Holanda não ser campeão mundial, em 74, na Alemanha? E o hábil armador Gerril Muhreu? E o volante Arie Haan? E Suurbier e Ruud Krol voando pelas laterais como se fossem pontas?

   Ah, como o futebol é ingrato! Como a vida é ingrata!

   Mais ainda, quando vemos a Argentina ser campeã mundial, roubando, em 1978.

*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Federação Internacional de Jornalistas.

 
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BOM SENSO e PROGRESSO



Arthur Carvalho (07/04/10)


    Qual o objetivo da Lei Federal que protege a flora e a fauna do Brasil? Como diria o Conselheiro Acácio, urge proteger a flora e a fauna do Brasil, preservando, em consequência, nossas riquezas naturais e ecossistemas.

    A lei veio para combater os caçadores de animais silvestres já em via de extinção, o contrabando aberto e criminoso de pele de felinos e répteis da região amazônica e do Pantanal, caçadores de raros pássaros canoros, como o pequeno uirapuru verdadeiro, habitante dos galhos mais altos da floresta, considerado o melhor cantor do mundo, e das aves de plumagem colorida e exuberante. Bom é que a lei parou com a bárbara matança de arribaçã e com o tráfego cruel de papagaios, araras e outras espécies de pássaros e animais em condições precárias, para o exterior e para o próprio território nacional.

   Mas há leis e leis. Se é justo mandar para a cadeia traficante de pele de animal ou mesmo o animal vivo, inclusive cobra, macaco, saguin, besouro, borboleta e sapo, para servirem de cobaia às experiências dos grandes laboratórios farmacêuticos americanos e europeus, sem falar nas plantas medicinais secularmente cultivadas e utilizadas pelos indígenas, não é justo prender o matuto nordestino que pega paca, tatu, preá e cotia para matar a fome da família durante a seca.

   Se é certo apreender passarinho maltratado em gaiolas e gaiolões, nos mercados públicos e feiras livres, não é correto apreender animais de estimação, tratados com zelo e carinho, durante anos seguidos, pelos seus donos. E esses donos são, na maioria das vezes, pessoas carentes, que têm nesses animais, sejam eles quais forem, companheiros inseparáveis e importantes para combater a solidão e a depressão. Isso está comprovado por psicólogos e psiquiatras. Tanto que os juízes já estão decidindo favoravelmente aos proprietários, mantendo ou restituindo-lhes a guarda dos bichos.

   É preciso os “agentes da lei” saberem (e eles sabem) que não podem entrar em casa residencial para tomar passarinho sem mandado judicial. Agindo assim, estarão praticando abuso de autoridade (embora sejam meros agentes de autoridade) e, pior, invasão de domicilio, delito previsto na Constituição Federal, nosso diploma maior. Tão importante quanto a codificação é sua aplicação com bom senso, sem truculência e arbitrariedade.

   2. Leio em Ancelmo Gois que as imobiliárias do Rio de Janeiro estão de olho no terreno do Jockey Club da Gávea, e as de São Paulo, no jóquei de Cidade Jardim. Por oportuno, lembro às construtoras do Rio que da outrora Cidade Maravilhosa ainda restam ser ocupadas por espigões de concreto as encostas do Pão-de-Açúcar do Corcovado e o restinho que sobrou da Floresta da Tijuca.

   E alerto os falsos pernambucanos, forasteiros e aventureiros em geral, que querem engolir o Parque da Jaqueira, o Sítio Trindade e a Tamarineira, que depois de destruírem esses últimos pulmões de oxigênio e o verde do Recife, ficam faltando ainda o Horto de Dois Irmãos e os 36h² do Jockey Club de Pernambuco, para sepultar de vez o único prado do Nordeste. E que tal aterrar o açude de Apipucos? Quantos lotes dão ali? Que desperdício! E derrubar as árvores dos 10 ou 12h² da colina do noviciado dos Maristas, do mesmo bairro? E as matas de Paulista, entupindo o Riacho Passarinho? Quantos prédios residenciais cabem no Country Club e no Caxangá Golf Club? Foi assim, paulatina e pertinazmente, que devastaram as matas de Beberibe e poluíram seu rio, cujas águas eram tidas como medicinais no século 18 e começo do 19, segundo Gilberto Freyre, e hoje é o mais putrefato do estado. Bairro preferido antigamente pelos ingleses, dado o seu clima ameno, o mesmo acontecendo com Casa Forte, Caldeireiro, Chacon e Poço da Panela. Mãos à obra, arautos do progresso!


Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Federação Internacional dos Jornalistas.


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UM LIVRO DE FÔLEGO







Arthur Carvalho (JC 31/03/10)


    Em priscas eras, embarquei, com meu pai, minha mãe e meus irmãos, daqui do Recife para Natal, num Ford V-8. Lembro bem que depois de passarmos por Goiana, João Pessoa e Mamanguape, entramos no chamado brejo da Paraíba, cruzamos Pipirituba, Guarabira e Bananeiras até adentrar o Estado do Rio Grande do Norte, pela cidade de Passa e Fica, depois Campestre, Riacho, hoje Tangará, Serra Caiada, Macaíba e Natal. No verão, com tempo bom, levava-se de carro, entre as décadas de 40 e 50, por estradas de barro ou areia, atolando sempre, de 7 a 8 horas; com as chuvas de inverno, e tudo alagado, de 9 a 10,11 horas.

   Essas viagens, principalmente em noite de lua cheia, me fizeram gostar da terra de Augusto dos Anjos. E leio tudo que me cai às mãos sobre suas cidades. Acabo de ler História política de Sousa (1945-2004), de Paulo Gadelha, pela CEPE. Desculpem o lugar comum: é desses livros tão honestos e bem escritos que não conseguimos interromper a leitura. O autor foi político (deputado estadual) na sua Paraíba, mas conseguiu dar o recado isento de paixões partidárias e ideológicas.

   Trata-se de trabalho de pesquisas exaustivas e de fôlego. Começa com a formação dos partidos políticos de Sousa, as primeiras eleições do Estado Novo, conta porque Antônio Pinto de Oliveira não quis ser senador, refere-se ao rompimento de José Américo de Almeida com Agemiro de Figueiredo, à queda de João Goulart, à reeleição de Fernando Henrique e a outros fatos políticos de relevância histórica.

   Lendo Gadelha, ficamos cientes do carisma e poder de liderança no cenário político contemporâneo da Paraíba, de um José Américo de Almeida, um Ruy Carneiro, um Zé Gadelha, um Antônio Maris, um Burity, um Humberto Lucena, um Wilson Braga e da família Gadelha de um modo geral.

   Curioso o lance do autor na passagem de Juarez Távora pela cidade de Sousa, em julho de 1954. Demonstrando personalidade, desinibição, inteligência e dotes oratórios precoces, Paulo Gadelha saudou “o velho revolucionário”, aos doze anos de idade, convocando Sousa a fazê-lo Presidente da República, pela UDN. Na ocasião, falaram ainda os deputados Ernany Sátiro e Alde Sampaio. Diz Gadelha que, no seu discurso, o General Juarez Távora lembrou a presença marcante da terra de José Lins do Rêgo na história da República, evocando o episódio de 1930, quando “a pequenina e heroica” tomou posição ao lado dos “jovens tenentes” e dos “oficiais verdadeiramente nacionalistas que queriam um Brasil melhor”.

   Tem razão o prefaciador Evaldo Gonçalves, da Academia Paraibana de Letras, quando diz tratar-se de um belíssimo ensaio sobre a Sociologia e a Política paraibana e nacional, em termos de cenário maior, no período estudado, com ênfase especial para as batalhas partidárias travadas em Sousa, “que, no dizer de José Joffily, há alguns anos, tornou-se um importante polo de influência dos destinos políticos da Paraíba, ao lado de João Pessoa e Campina Grande, privilegiada condição que preserva até hoje”.

   Meu saudoso tio Aloysio de Carvalho Filho, que você conheceu, gostaria muito de ter lido esse seu livro, Gadelha.

   P.S.: Correspondência do Procurador da República Lineu Escorel Borges, dizendo que Thomas Morus viveu de 1478 a 1535 e não no século 14, como afirmei na crônica Prato Frio aqui publicada. Com paraibano não se brinca...


*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Academia de Artes, Letras e Ciências de Olinda.


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PRATO FRIO





Arthur Carvalho (JC 24/03/10)


   - Alô! Não feche negociação com aquele cara. Ele não paga a ninguém, é um caloteiro. Feche com Ricardo. Paga atrasado, mas paga.

   Ao que parece, o cidadão que assim berrava ao celular, em pleno restaurante, falava com o representante comercial de sua firma, estabelecida em João Pessoa. Muito bem, é direito que lhe assiste, mas o que o pessoal que almoçava no restaurante tinha a ver com seus negócios? Que direito ele tinha de perturbar a refeição e a conversa dos seus vizinhos de mesa, o trabalho das garçonetes, o sossego dos solitários, o namoro dos casais? No fundo, no fundo, ele acha que seu exibicionismo lhe confere status profissional e social.

   Outro dia, fui retirar os autos de um processo na Vara Cível, a moça pediu o endereço do nosso escritório e o número do telefone, eu dei tudo, ela exigiu ainda o número do celular, quando eu disse que não tinha celular, ela me olhou incrédula e perplexa, e quedou imóvel, esperando que eu deixasse de brincadeira de mau gosto, como se estivesse falando com um dinossauro. Percebendo o constrangimento, Cacilda Matias, nossa estagiária, forneceu o dela, resolvendo o problema.

   No comércio é a mesma coisa. O balconista anota seu nome completo, estado civil, RG, CPF, residência, profissão, endereço residencial e comercial, tipo de sangue, telefone de casa e do trabalho. Não satisfeito, exige o indefectível celular. Na verdade, ninguém é obrigado a fornecer telefone residencial e celular a quem não conhece.

   Um corretor de imóveis esteve em nosso escritório, eu não havia chegado, sentou na sala da frente e ficou me esperando. Como demorei, pediu meu celular à recepcionista, ela disse que eu não tenho, ele telefonou,fazendo a mesma pergunta a um amigo meu diante dela e dos nossos clientes. Até que meu filho, Carlos, aproximou-se e disse-lhe que eu não tenho celular.

   Numa coisa me diferencio de certos usuários de celular: apesar de não usá-lo, quem quiser falar comigo, me encontra. Quando saio do escritório, digo às meninas aonde vou, onde elas devem me procurar, o mesmo acontecendo quando saio de casa. Enquanto isso não consigo me comunicar com muitos donos de celular que dão, quase sempre, caixa postal, fora de área ou ocupado. Outra desvantagem do celular é que não funciona ou funciona mal em algumas áreas. Nada pior do que tratar assunto sério com celular falhando ou cortando.

   O competente ourives português Pedro Sá, que fez meu anel de formatura, me procurou um dia, queixando-se de que comprou um terreno no Prado, quitou todas as prestações e o dono do imóvel não queria assinar a escritura pública e definitiva de compra e venda, conforme o acordado no instrumento particular de recibo de sinal. Perguntou o que fazer, aconselhei-o a entrar com ação de reintegração de posse contra o vendedor. No dia seguinte, ele me procurou: “Sabe de uma coisa, doutor? Eu estive pensando: quando cheguei ao Brasil já havia esse lote. Então deixa ele aí onde está. Não quero briga”. Confesso ao leitor que não entendi bem o que ele quis dizer. Me inspirei nesse lusitano, Pedro Sá, quando Anibal Rolemberg perguntou por que eu não usava celular. Respondi que meus avós e meus pais nasceram, se criaram, viveram e morreram sem celular, então não há motivo para eu ser escravo desse aparelhinho chato, inconveniente e infernal. Quero almoçar, jantar e dormir em paz. Não quero que minha feijoada esfrie no prato.

   Segundo Aldous Huxley, ao contrário da ilha onde reinam a justiça social, política e econômica, a liberdade de pensamento, concebida por Thomas Morus no século 14, vivemos num ambiente de pesadelo e os mecanismos criados para o bem- estar dos seres humanos são os mesmos que os aprisionam. Falar nisso, vou interromper essas mal traçadas para atender o celular da minha filha.

   PS.: E-mail de Jorge Tasso dizendo que a ponte da Capunga chama-se ponte Lacerre, em homenagem ao engenheiro francês que a construí e não ponte Morais Rêgo. Sei que é Lacerre, Jorge, mas procurei pessoalmente e não tem placa alguma indicando na ponte. E no catálogo de telefone consta ponte Morais Rêgo.


*Arthur Carvalho, advogado e jornalista, é da Federação Internacional dos Jornalistas.



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